Bruno de Paiva e Souza
Metáforas: uma breve análise de “O carteiro e o poeta”
Recebi com alegria a incumbência de comentar um pouco sobre o âmbito ético e crítico do belíssimo filme do diretor britânico Michael Radford, intitulado “O carteiro e o poeta” (1994). É uma obra que conjuga a genialidade e a simplicidade de forma extraordinária, provocando uma reflexão profunda sobre a existência humana, entre outras leituras possíveis.
As personagens principais do filme são Mário Ruoppolo e Pablo Neruda. O último, um renomado poeta comunista. O primeiro, um desempregado sem vocação para a pesca, que aceita o emprego de carteiro que entrega as correspondências para um só homem. Ao longo da trama, percebemos que o carteiro e o poeta podem ser um só, pois Mário desperta-se paulatinamente para a poesia que trazia dentro de si, após aprender com o seu camarada a fazer metáforas e a usar a língua “para algo melhor do que lamber selos”.
Havia uma mística em torno de Pablo Neruda, tanto por seu engajamento político como por sua fama galanteadora entre as mulheres. Uma pessoa que nos parece realmente fabulosa, mas que nos decepciona no momento em que deixa seu admirador e amigo Mário e dele se esquece. Pablo é, enfim, apenas humano: alguém com seus conflitos e questões, com uma vida cotidiana, com vinculações de amizade e com objetivos pessoais, coisas tipicamente comuns às pessoas.
Pablo Neruda é um exilado político, e representa muitos que com ele se identificam. Exilados como Mário, que de certa forma se exila não porque não faça parte do mundo em que está – ele faz. Mas porque em parte não quer deixá-lo, ao mesmo tempo em que não se enquadra mais nesse estilo de vida. Nesse exílio, ambos os exilados – Pablo e Mário – não são plenamente reconhecidos como cidadãos, e também não se reconhecem mais como tais e buscam uma cidadania melhor, superior, mais verdadeira, apesar do amor à sua pátria.
A ditadura no Chile, país de origem do poeta, durou de 1973 a 1990. Neruda morrera apenas alguns dias depois do golpe. Conta-se que por sua palavra militante poética, exilou-se do país. O filme não se prende fielmente à localização geográfica e temporal do exílio, pois não tem como objetivo ser um relato histórico, antes, servir como inspiração a uma análise reflexiva.
O exílio do poeta não é apenas por causa de sua pessoa, mas também (e principalmente) por causa de sua palavra e do impacto que ela teria. Portanto, retrata a rejeição à palavra poética, justamente pelo fato de que esta possui em si um potencial criativo que aos dominadores não interessa que os demais homens possuam. Aos dominadores interessa criar um mundo como lhes apraz, e sem concorrentes à altura. A “voz do povo” precisa ser calada tanto quanto possível para evitar problemas: Este é o recado dado, implícito no exílio do escritor e político comunista, que a representa.
A expressão poética, por sua vez, traz em seu bojo a capacidade de pensar diferente, de ressignificar, de buscar outros sentidos aos significados socialmente estabelecidos. Ser poeta, assim, é não encontrar-se na realidade que está dada, mas dispor-se constantemente a romper com o que é oferecido, em prol de um melhor ideal pessoal, social, universal.
No encontro entre o carteiro Mário e o poeta Pablo, na verdade, cada um transmite ao outro um mundo que seu interlocutor desconhece. Há uma relação de troca, não apenas de transmissão unilateral de saber, como se pode pensar de início. Uma leitura tradicional teria apenas valor a sabedoria que o poeta tem. Mas, a observação atenta nos mostra o quanto há de valioso no carteiro, um homem simples que entrega mais do que cartas, mas seu coração, seu mundo interior: com todo amor ingênuo e a inquietação com a injustiça que nele há, com dilemas e ansiedades diante de um mundo exterior cheio de contradições que cada vez menos lhe comporta, já que Mário sente a necessidade de expandir-se, mesmo sem saber como poderia fazê-lo.
Mário é muito mais do que aquele que leva cartas, isto é, a mensagem escrita pelos outros. Ele também é um militante em seu inconsciente, um poeta a ser despertado, alguém capaz de produzir mensagens autênticas, tão autênticas que chegam a surpreender pela ingênua profundidade. Ele é alguém maior do que os olhares relapsos de seus colegas (e até de seu pai) podem captar. Ele é um carteiro que começa a se ver como poeta. E com isto, à medida que assistimos ao filme somos também convidados à alteridade, a ser poetas, todos nós, mesmo sem que percebamos o convite logo de início.
O contato entre Mário e Neruda é humanizador, pois ao se encontrarem no sofrimento um do outro, se surpreendem, e a nós que acompanhamos essa relação de acolhimento, oposto da relação de expulsão dos que rejeitam e exilam aos que lhes são diferentes, sobretudo aos que sentem com a mente e pensam com o coração, pelo espírito de poeta que possuem.
As pessoas pobres e sofredoras daquele vilarejo remoto, onde se passa a maior parte da trama, estão resignadas com o modo exploratório a que são submetidas. Não possuem autoestima, nem perspectivas, apenas sobrevivem como de costume. Quem é poeta (e também tem alguma noção da exploração social) consegue se identificar com as pessoas que sofrem, com as questões que vivenciam, com os sentimentos que carregam. Por isso, se indigna com a exploração mais do que os outros explorados. A humanidade que iguala os seres humanos, presente na consciência poética, inevitavelmente confronta-se com a desigualdade a que os homens são submetidos e se submetem reciprocamente na realidade que nos abarca.
As duas personagens tipificam aquele é do interior do grupo social subjugado, mas está insatisfeito, e aquele que vem de fora, não querendo fazer parte do grupo para não participar dos jugos que lhe são impostos. Mário, em sua missão silente, é o agente dessa aproximação entre o poeta que vive retirado do povo e o povo que vive naquele lugar.
O carteiro é um típico proletário. Às vezes não se tem consciência do que causa a dor, mas sabe que algo lhe dói. A exploração do homem tende a coisificá-lo, mas ainda há nele humanidade, uma parte do seu ser que não foi dominada pelo poder. É ali que pode morar a poesia, não num sentido meramente esteta, mas num sentido criador de algo novo, da liberdade. É ali em seu interior que moram os sonhos, de onde as utopias podem surgir, de onde os desejos traçam possíveis caminhos, é ali que as possibilidades emancipadoras aguardam a coragem de ver o que não se vê, de querer conhecer as pessoas e realidades além da superficialidade delas.
É nesse lugar interior, em nossa alma, que não foi capturada pelo sistema opressor, que vive o amor. O amor, que é mais do que um desejo fugaz, que é um dínamo capaz de nos levar a transcender ao que é aparente, que nos transforma e nos torna agentes de transformação. O amor, essência de Deus, que nos permite ouvir o som do mar e o silêncio do céu, que nos acalenta o coração. Ah! Este sublime sentimento, que vive em algum lugar de cada ser humano e é tão evocado pelos poetas…
Em sua jornada, Mário encontra uma motivação para viver e para sonhar. Pode-se presumir que Mário, sem o amor genuíno pela moça Beatrice, sua musa inspiradora, não descobriria a palavra de poesia que habitava em sua alma e talvez não chegaria a conhecer a si mesmo, tampouco ao outro, em suas dores e belezas.
O posicionamento que o carteiro tem ao defender um pobre pescador diante de um rico desprovido de compaixão mostra que algo impactante tinha acontecido na sua consciência. Essa cena marca uma transição feita do individual para o coletivo, do interesse próprio para a solidariedade – transição essa que, se ocorresse em várias pessoas, teria o poder de tornar o mundo um lugar bem melhor. É o que o filme também nos chama a fazer.
Ambos os poetas, um exilado por punição política, outro por não reconhecimento de seu pertencimento a seu lugar de origem, sentem a necessidade interior de participar. Mas sua participação tem que ser ativa e não apenas se anulando ou conformando-se com o que existe. Eles são portadores de uma palavra, a qual transgride a passividade e a normalidade vigentes.
Destarte, precisam liberar esta poesia e o seu poder de transformação. E não seria justo pedir-lhes algo menos do que isso! Assim, Neruda vai viajar pelo mundo, levando sua palavra iluminada. Já era de se esperar, pois ele é um “homem importante”.
Mário nutre por Pablo uma admiração notável, e em contrapartida necessitava e intimamente esperava um reconhecimento do seu “grande amigo”. Esse reconhecimento não aparece nas entrevistas, nem nos textos, nem mesmo em uma carta do seu camarada.
É emblemática a espera de Mário por algumas linhas em sua referência em uma carta recebida, mas esta é escrita pela secretária de Neruda e contém apenas uma lista de coisas que ele deveria lhe enviar de volta. O carteiro desempregado, que outrora levara tantas novas ao poeta, sentiu vontade de recebê-las ao menos uma vez. Essa esperança que se frustra adoece a alma de Mário, mas de certa forma contribui para seu despertamento, pois um poeta não vive só de amor, mas também de dor.
O desamparo sentido por Mário, que agora não tinha mais o seu conselheiro, poeta e amigo a quem consultar, acaba ajudando na sua emancipação. A partir dali, ele teria que seguir sua vida, ao mesmo tempo em que recebia a capacidade de também criar. Não mais usar a poesia de outro, mas compor sua obra, sua trajetória, seu posicionamento de vida.
Por sua vez, Mário também sente o desejo de não estar ali, na velha ilha de pescadores. Não por não gostar do lugar, que, apesar do abandono político e falta de água, tem suas belezas – das quais a principal é Beatrice Russo! Mas a motivação desse desejo de partida é que ninguém o entende naquele lugar. Por tanto tempo sem pensarem por si mesmas, acham estranho que alguém queira pensar ou se expressar. Tarde demais: Mário Ruoppolo já se torna um manifestante!
A falta de água na ilha simboliza a falta de vida, tanto quanto a falta de poesia representa a falta de liberdade dos moradores locais, que – por não enxergarem saídas – se conformavam com a exploração ou tentavam negá-la, mesmo sendo esta bastante evidente. O político profissional Dom Di Cosimo, que é propagandeado como salvador na época de eleições, é, na verdade, um grande explorador, provavelmente o maior deles. Mas em meio ao descaso de todos os lados, Mário percebe que coisas belas ainda foram deixadas para ele: a natureza, a consciência, o filho que viria, o camarada do Correio.
É quando resolve sair na empreitada de gravar os sons característicos da ilha: as ondas – pequenas e grandes, os ventos – nos arbustos e nos penhascos, as redes (tristes) dos pescadores, o sino da igreja – com o padre ao fundo, o céu estrelado – cujo silêncio libertador difere da silenciosa indiferença humana, o coração de Pablito – o filho no ventre da mulher amada, que simboliza a vida que se renova. O gravador inanimado empresta ao humano a capacidade de rememorar, admirar, fazer brotar as ideias...
Mário não só grava, mas ele “ouve” a ilha, tanto em sua sonoridade quanto em seu silêncio, e nessa contemplação expressa a sua própria transformação. Sim, ele encontra ao seu redor um celeiro de belas e curiosas metáforas. O gravador móvel, o carrinho do bebê, a folha de papel com o poema escrito que voará depois, tudo isso tem o sentido de uma nova vida, que se movimenta em busca da liberdade.
É quando nossa personagem vai se expressar ao mundo, convidado a declamar sua homenagem à ilha e a Neruda em um palanque político. A violência dos policiais, porém, interrompe seu itinerário, tirando-lhe a vida e os sonhos. É o coroamento da opressão com uma tragédia.
Mário morre. Contudo, a sua palavra poética não pode perecer, pois ela tipifica a voz dos aflitos e o clamor em favor de muitos. Assim, mesmo que a folha (em que o poema a ser declamado por Mário estava escrito) seja pisada pelas pessoas da multidão dispersa, o vento ainda a pode fazer voar. E o poema, alguém o poderá ainda dizer, e alguém mais o poderá escutar, e quem sabe outros mais sejam despertados e transformados por ele…
Neruda, anos depois, retorna à ilha. Ali encontra Pablito. Ali toma ciência da relevância que teve na história de Mário e de como, aquele carteiro um tanto desajeitado se tornara um homem admirável por sua autenticidade, simplicidade e entrega voluntária a uma causa. O poema em homenagem à ilha, escrito por Mário, com dedicatória a Neruda, nos faz pensar que possa ser uma poesia militante, que enaltece a beleza da natureza, sem esquecer-se do sofrimento humano.
Sim, Pablo Neruda havia feito um bom discípulo, e não sabia. A cena final mostra esse poeta olhando a infinitude do horizonte. Quem sabe, se despedindo do amigo que se foi, voando por entre as inspiradoras metáforas…