Celina Fernandes
De sonhos e espíritos
Dizem que não devemos evocar os espíritos que eles aparecem. Pois não é me aconteceu! Talvez por distração, talvez por excesso de pensamento. Difícil saber quando uma coisa é uma coisa e a outra, outra.
Já não o amava mais. Amei, o amei muito e me via agora sendo apresentada ao lugar de que tanto me falara. Era minha primeira vez ali. Meus passos nas ruas delicados, quase respeitosos. Era minha primeira vez ali sozinha. Os passos delicados diferiam da respiração ofegante. Viagem longa, com destinos previamente traçados com direito a alterações. O tom da respiração descompassava da leve embriaguez dos pensamentos. Como equilibrar pés, respiração e pensamentos quando o corpo expressa a perplexidade da alma?
Rumo ao sul mourisco, suntuoso na simplicidade do gesso finamente trabalhado. Um dia de chuva foi suficiente para encharcar calçadas, impedir caminhos, levar os pés a cuidar ainda mais dos passos.
Disse que não o amava mais, mas aquele lugar o fazia tão presente. Lia seu nome em toldos, placas de estabelecimentos comerciais e de ruas. Teria havido tantos Fernandos assim? Seu nome brotava com lente de aumento das tabuletas mais inesperadas.
Havia três meses que tínhamos nos encontrado. Ele me pareceu tão pouco atraente no restaurante árabe apoiado num guarda-chuva. E ele, justamente ele que encantava plateias, mulheres e homens, agora ali diante de mim com um guarda-chuva. Pensei por um instante que Fernando e um guarda-chuva não combinavam. Enganei-me. Não naquele momento. Lá atrás, apaixonada. Fernando e guarda-chuva definitivamente foram feitos um para o outro.
Agora sabia que aquele que caminhava pelo parque Maria Luiza com as barras das calças dobradas com receio da água da chuva empoçada era ele mesmo. Se as barras arregaçadas puderam me causar dúvida, a máquina fotográfica pendurada no pescoço e o celular em uso eram índices irrefutáveis.
Quando o esforço para equilibrar pés, respiração e pensamentos é grande, o equilíbrio em colapso leva ao desencontro entre o que se vê e o que se sonha. Nesses momentos, por defesa, tendemos a acreditar que é sonho o que o acaso nos impõe como realidade.
Ali, a poucos passos distante de mim, sem ainda ter me visto, Fernando. O assombro do meu pensamento, embora mudo de voz e gestos, parecia tê-lo alcançado. O olhar que encontrou reciprocidade foi suficiente para produzir o desespero da fuga desenfreada. Agora, as barras das calças cujas dobras se desfaziam já não importavam para as calçadas molhadas, as ruas escorregadias...
Muda. E muda fiquei por alguns segundos ainda não tendo descartado a hipótese do sonho. Do sonho andaluz que habitara em mim em todas aquelas cidades que visitei. De repente, o impulso do pensamento que nos acode em tempos difíceis. A ideia de correr também. Correr em sua direção, não para alcançá-lo porque já havia ficado claro que de nada adiantaria um encontro. Corria para não ficar em dúvida, para saber ser realidade o sonho-pesadelo que me abatia. O enigma desvendado pelo corpo que não resiste e vai sem considerar o medo que antes retardara os passos. Corpo que materializa o motivo de seu deslocamento repentino. Olhar fixo que não se engana.