Ligia Colonhesi Berenguel

“Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje a impressão da realidade.”
Graciliano Ramos

Muitos Pontos

Sei que escola é lugar de relações. Lugar em que narramos nossas histórias e as entrelaçamos entre si. É um emaranhado de fios se emendando, desmanchando, se partindo e se enrolando num enredo contínuo e infinito.

Nessa comunhão de fios e de saberes construímos a história da primeira etapa deste ano. Mais rápido do que poderia imaginar, boa parte da costura está pronta. Para continuar este minucioso trabalho, é preciso observar os pontos alinhavados até aqui e cuidar para que se façam belos os próximos movimentos.

Assim, resolvo olhar nossa colcha de retalhos, exposta há tempos na entrada da escola e assim, percorrendo vagarosamente seus recortes, repasso os desejos deste ano expressos com letras traçadas no tecido.

Paro para olhar a escola. Por um instante tudo pode ficar estático. Parece até uma brincadeira de criança. A agitação se suspende. O barulho cessa.

Incrível! Vejo imóveis adultos pelo pátio. Crianças sorrindo ainda em movimento de corrida. Olho portas e paredes. Cores expostas. Marcas. Espaços cheios e espaços vazios.
O que construímos até aqui?

Aproveito para espiar dentro dos ambientes. O que revelam do percurso deste ano? Que histórias têm para contar?
Subo as rampas. Vejo em algumas paredes marcas do trabalho. Outras carecem de sentido. O vazio qualifica e desqualifica. Assim como o cheio.

Espio pelas portas, procuro rastros, pegadas, pontos que ressaltam na costura trabalhosa empreendida por nosso grupo. Quais detalhes ficam mais visíveis? Quais os destaques desta trama? Seguro forte minha máquina fotográfica.

Procuro por respostas, mas me inundo de perguntas.

Resolvo olhar com mais atenção os espaços ocupados pelas crianças nas salas. Olho o modo com que as carteiras estão dispostas. Olho os materiais organizados na quadra. Revelam a desejada integração? A necessária relação?
Que histórias estas pessoas e estes espaços têm para contar?

Procuro fazer minha silenciosa leitura. Contaminada por meus desejos, pelo modo distorcido que necessariamente minha posição impõe. O que será que este espaço pode contar além daquilo que guardo, daquilo que sei?


René Magritte, La Condition humaine, 1934.

Fecho os olhos já sentada na sala de leitura. É de lá que vejo agora a escola estática. Aproveito para circular por este espaço e perguntar a ele o quanto mais pode dar para nós e para as crianças. Procuro pelas paredes marcas dos trabalhos com leitura na escola. E me pergunto, por quê? Se, então, como,... silencio por instantes. Essa meta precisa de ajuda. Ler é preciso. Há muitos olhos em toda parte precisando saber disso. Esses olhos dependem tanto de nós.

Paro por instantes pensando no contraste. Nas pontas: livros e computadores. Disputado laboratório de tecnologia. Sempre povoado. Magnetizado. Aproveito para pensar em como o uso do computador e dos ipads (tão esperados tablets!) estimularam as aprendizagens neste primeiro trimestre. De canto, espio pela porta. Há muito que produzir certamente nesse campo. Que passos demos e a que ritmo? Fecho os olhos e dou nome à música que toca. Gosto do som, mas é ainda distante daquele desejado pelas crianças.

Penso que é preciso tocar outra música. Mais vibrante, num ritmo mais forte e crescente. Talvez colocar mais força nas cordas e no vocal, ou mudar os instrumentos, ou o arranjo. Quem sabe a frequência das notas. Sei que precisamos acrescentar mais ritmo a este trabalho, especialmente ao uso dos ipads. Resolvo tirar uma foto para me lembrar disso.

Laboratório de Ciências. Uma passada me faz pensar que marcas estão por lá. Sei que o trabalho ganhou mais autoria nessa área nesse início do ano, mas acho que preciso saber mais o que os sujeitos pensam das mudanças, pois não consigo localizar no espaço e nas vozes das crianças a história desta construção. Procuro pistas, tal como um cientista...

Volto à minha sala e fecho a porta. Debruço sobre os inúmeros papéis. Percorro os olhos sobre meus muitos cadernos e anotações. Pego os registros dos conselhos de classe, dos grupos de estudo, algumas pautas dos encontros de formação. Concluo que avançamos. Houve mudança no planejamento destes encontros, no modo de participação das pessoas. Penso ser este um ponto importante. Vejo fios soltos, mas contidos na trajetória da linha na trama.

No canto da mesa, alguns cadernos de registros produzidos por professores. Num clip, perguntas seguem presas. “Será que está claro o poder e o alcance dos registros?” “Que tipo de formação pode dar conta de garantir a todos o entendimento do trabalho com a identidade do grupo e da escola?” “Que escola esses e os outros registros mostram para mim e para o mundo?”

Ah! O mundo...

Paredes da escola começam a virar portas e janelas. Galeria de Artes, Museu de São Caetano, Biblioteca Municipal. Histórias traçadas no papel há bem mais de um ano...

Suspiro. Encosto na cadeira. Olho o pátio. Solto o movimento. Crianças correm e cantam. Espaços ganham contornos. Um chapéu de pirata encosta no vidro da sala e um cavalinho passa a galope. Alegro-me em ver que brinquedos, músicas, danças, brincadeiras e crianças estão se relacionando de forma mais intensa a cada dia. Penso que começamos a cumprir nossa responsabilidade em disseminar e permitir a cultura da infância. É um começo de tantos começos. Torço para que todos abracem também esta causa.

Como foi esse começo de ano? Preciso anotar o que vamos colocar força no 2º trimestre. Não posso me esquecer de nenhum detalhe.

Partindo pelo começo, resolvo voltar ao planejamento do meu trabalho. Abro um arquivo e escr....toca o telefone.
Sei que meus pensamentos vão e vem. Foco, Ligia! Pense em como mobilizar essa equipe, em fazer com que desejem ir além, que se constituam como grupo e que sintam o quanto são capazes de, a cada dia, se superar. Será que sentem isso verdadeiramente? Espero que sim.

Alô? Pode falar!

 

“Para os navegantes com desejos de vida,
a memória é o ponto de partida.”
Eduardo Galeano