Natalia Pineiro Bressan Dutra

O espaço geográfico como potencial formador¹

Os ambientes falam por si só. Todo espaço físico comunica as intenções e os conceitos que estão por trás dos sujeitos que o compõem, que transitam por ele, que o utilizam como lugar de passagem, como lugar de pouso, como lugar de encontro. O espaço geográfico é o lugar ocupado por pessoas envolvidas em uma série de relações e com um olhar observador conseguimos entender através dele como são as relações sociais estabelecidas por um determinado grupo.

Pensar o espaço como um lugar para além do geográfico, do físico, é identificar a potência simbólica que está presente nele, é perceber as camadas de significações que estão presentes em cada escolha, ou não escolha, na arquitetura, na decoração, nas informações visuais.

Assim, quando observamos os corredores de uma escola, seus lugares de trânsito, o pátio, o refeitório, as salas, conseguimos entender um pouco as posturas conceituais que estão presentes nos profissionais que gerem aquele lugar, mesmo que os sujeitos envolvidos não sejam conscientes dos signos escolhidos que se instalam por toda parte, e essas informações colaboram para a formação das crianças que ocupam aquele espaço.

Se pensamos o espaço geográfico como um dos elementos formadores do sujeito através dos signos que ele comunica, precisamos identificar as possibilidades de utilização para que ele seja potencialmente pensado como um dispositivo formativo. A partir desse pensamento, busquei práticas que se encaixavam no meu papel como professora de artes para dialogar com o interesse da escola sobre os usos dos espaços em seu projeto pedagógico.
Entendendo a arte como vital para a formação do sujeito, precisávamos, enquanto instituição, proporcionar experiências estéticas no dia a dia das crianças. As exposições dos trabalhos produzidos por elas já ocorriam em reuniões, eventos, na Mostra Cultural da escola e de formas pontuais, mas de maneira geral, as experiências vividas em arte eram cerceadas pelas paredes do ateliê, era necessário um olhar mais intencional para que a potência das trocas através da arte produzida pelos alunos fosse libertada.

Se olhamos para a escola como esse lugar potencial para as trocas entre todos os sujeitos presentes na comunidade escolar, precisamos proporcionar experiências que os situem enquanto cidadãos dentro de um contexto social, político e cultural. Como afirma Rosa Iavelberg:

A arte constitui uma forma ancestral de manifestação, e sua apreciação pode ser cultivada por intermédio de oportunidades educativas. Quem conhece arte amplia sua participação como cidadão, pois pode compartilhar de um modo de interação único no meio cultural. Privar o aluno em formação desse conhecimento é negar-lhe o que lhe é de direito. A participação na vida cultural depende da capacidade de desfrutar das criações artísticas e estéticas, cabendo à escola garantir a educação em arte para que seu estudo não fique reduzido apenas à experiência cotidiana.2

Pensando nisso,ficou latentea instituição de um espaço expositivo permanente dentro da escola, para que funcionasse como um ambiente de troca, de apreciação, de contextualização entre os conteúdos aprendidos, as experiências vividas e os trabalhos produzidos pelos diferentes grupos formadores da escola: A Galeria Villare.
Apesar do pequeno espaço geográfico da Galeria, elatem se configurado como um grande espaço simbólico e, ao longo de um ano e meio de existência, já recebeu 13 exposições, que traduziram de diferentes formas o trabalho produzido pelos alunos no ateliê. A Galeria passou também a representar um lugar de importância para as relações dos alunos, funcionários e para a identidade da escola.

Transpor a barreira do portão da escola para o mundo, transformando a escola em um espaço permeável, contaminado pelas relações entre o sujeito e o mundo compartilhado socialmente é uma das intenções da Galeria, que busca afirmar seu espaço através das relações que são estabelecidas entre os objetos de arte e as pessoas que se relacionam com eles, gerando atritos, novos pensamentos, críticas e reflexões a partir do que está sendo exposto. É importante que esse espaço seja entendido como um espaço vivo e mutável, que gera potências de pensamentos através da relação objeto e fruidor, aquele que interage com o a obra de arte.

Ana Mae Barbosa em seu livro A imagem no ensino da arte já nos alertava para a necessidade da formação do fruidor da arte, afirmando que é necessário, além da formação de bons produtores de arte que se formem bons fruidores, para que seja possível se posicionar criticamente diante do que é oferecido enquanto produto da cultura.

O que a arte na escola principalmente pretende é formar o conhecedor, fruidor, decodificador da obra de arte. Uma sociedade só é artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produção artística de alta qualidade há também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público.3

Assim, através da Galeria Villarequeremos ir ao encontro de Ana Mae quando ela diz sobre a importância de se ‘formar o conhecedor, o fruidor, decodificador da obra de arte’, pois é necessário que as crianças tenham essa vivência espacial com os objetos de arte, não só no momento da produção, mas também da apreciação.
A partir disso também podemos afirmar que existe certa postura diante de um ambiente de exposição que é acordada de maneira relacional por todas as partes envolvidas no espaço e que é preciso ser aprendida também. Essa postura corporal, atitudinal, que é buscada para favorecer as trocas e as reflexões a partir da relação entre os sujeitos que compartilham o espaço expositivo e entre os sujeitos e os objetos.

Uma das características notáveis desta fase do desenvolvimento é a descoberta, pela criança, de que é membro da sociedade constituída pelos seus pares. Assim, durante esse período, elas lançam os alicerces da sua capacidade de trabalho em grupo e da cooperação na vida adulta. 4

Viktor Lowenfeld aponta para as características de desenvolvimento cognitivo e motor em cada etapa de desenvolvimento das crianças, mas também expõe sobre o desenvolvimento afetivo, social e criativo, e afirma que nessa etapa da vida é necessário se relacionar com experiências que alicerçam a capacidade da criança de se relacionar com seus pares nos contextos oferecidos pela sociedade. Nessa fase de desenvolvimento é de fundamental importância a qualidade estabelecida através da experiência pura e não só do discurso, mas sim do exemplo real para balizar a postura que terão como adultos.

Por isso, acredito que o convívio com a Galeria Villare estruture a maneira como as crianças entendem um espaço expositivo e como se relacionam com ele, melhorando qualitativamente a relação com exposições também fora da escola daqui para toda sua vida social.

E já é possível afirmar, após termos montado 13 exposições, que a postura dos alunos diante dos trabalhos apresentados ganhou corpo, e as reverberações a partir dessas experiências são visíveis no cotidiano da escola. A postura de respeito aos trabalhos dos colegas melhorou muito e os comentários sobre as exposições se intensificaram, tanto das crianças quanto dos adultos presentes nesse contexto.

A partir desse escopo conceitual que sustentou a criação da Galeria Villare, passamos a pensar o que seria essa via de comunicação entre o que acontece dentro e fora da escola, além de o espaço por si só já se configurar como um espaço cultural, social e político.

A vontade era neutralizar um pouco a separação entre esses dois mundos, e foi assim que nasceu o desejo de trazer trabalhos de artistas para dialogarem com o cotidiano da escola, com os trabalhos das crianças.

logo galeria villare.jpg
Desenho do espaço da escola

 

digitalizar0001.jpg
   Logo da Galeria Villare

          

Como iniciativa, busquei estabelecer contato com artistas quetrabalhassem em algum nível a partir das reflexões que estávamos vivenciando com as turmas de 1ºano do ensino fundamental I neste ano de 2014.

O 1ºano foi escolhido como grupo para estabelecer uma relação mais próxima com um artista convidado, pois não iria visitar nenhum museu de arte no 1º semestre, então pensamos que uma boa solução seria trocar a visita por uma experiência direta com o artista. Foi com esse anseio que o projeto se iniciou, mesmo sem ter um artista disponível de início.

O projeto do 1º ano foi pensado em termos de linguagem, buscando pontos de encontro entre a escrita e a imagem. Assim, em nosso percurso, refletimos sobre o trabalho de alguns artistas que lançaram mão dessa ponte, trazendo para as crianças a experiência de vivenciar a grafia como símbolo, como forma, como volume, como corpo gerador de ideias.

No decorrer do semestre percorremos um caminho que nos revelou inúmeras possibilidades para desenvolvermos nosso trabalho. Para isso, busquei artistas que explorassem esse tema das mais diversas formas e que colaborassem para enriquecer o universo imagético das crianças.

Passaram pelo ateliê os artistas: Pablo Picasso, Mira Schendel, MariláDardot e Leonilson, que trouxeram para nós poéticas diferentes no uso das letras enquanto símbolo e enquanto imagem.

As crianças passaram por processos reflexivos e motores a partir do contato com a obra desses artistas e das experiências com recorte, colagem, desenho, pintura, modelagem e bordado, em um processo que além de trabalhar a visualidade também se aproximava das questões relacionadas à identidade, já que boa parte das atividades foram feitas comos nomes das crianças e das relações imagéticas que elas estabeleciam com eles. 

Esse caminho, guiado pelas grafias, veio ao encontro do momento que os alunos dessa faixa etária vivenciam: a alfabetização. Nesse sentido, o ateliê teve um papel de agregar novas significações a esse processo tão intenso que é a aquisição da linguagem escrita.

As professoras polivalentes tomaram a frente desse projeto, pois dividimos a carga horária da disciplina de artes, elas realizam duas aulas de arte semanais e eu os acompanho em mais uma no ateliê. Portanto, realizei um planejamento em parceria com as professoras, com aulas de arte que dialogavam nos dois ambientes, por agentes comunicadores diferentes, o que conferiu muito mais força ao projeto.

Semana após semana as crianças traziam informações e vivências que tinham sido realizadas em sala de aula e isso agregava mais importância ao trabalho que realizávamos no ateliê. Aos poucos senti as crianças mais familiarizadas e engajadas nas aulas.

DSCF9758.JPG
DSCF1567.JPG DSCF1621.JPG DSCF1839.JPG
DSCF1387.JPG DSCF1964.JPG

Vivências com arte das crianças do 1º ano do ensino fundamental I

Nesse meio tempo conheci o artista Celso Ninomiya, que se dispôs a emprestar seus trabalhos para uma exposição na Galeria Villare e a visitar a escola para conversar com as crianças.

O trabalho de Celso Nino, como prefere ser chamado, me comoveu instantaneamente por se tratar de objetos de seu próprio percurso de formação, em caráter mutável e aberto a novas reflexões. O uso da palavra é excessivamente feito em um ato intenso de anotações de sala de aula, onde os assuntos percorridos fazem parte do universo das artes.

Aluno do curso de Artes Plásticas da USP, Celso realiza belíssimas pinturas em aquarela que são corpo para as futuras anotações realizadas no contexto da sala de aula, como ele mesmo define:

Há uma pretensão de não-linearidade no modo de compor textos e imagens. O objetivo é juntar sentenças, palavras e termos desconectados do seu sentido original (a fala organizada do outro), e capturar novos sentidos, misturando falas de uns com outros.5

Nessa definição está presente uma grande conexão entre o seu trabalho e o processo vivenciado pelas crianças em um movimento de subtrair o significado das letras, compor com letras, propor relações novas entre elas, compor imagens a partir das letras.

Claro que as reflexões são adequadas à fase de desenvolvimento das crianças pequenas, mas esses aprofundamentos acerca do processo criativo da arte, no sentido da imageme, também no sentido das possíveis reflexões, foram muito bem-vindos para os adultos que entraram em contato com o trabalho desse artista, que traz para a escola um fluxo de criação que é próprio da arte contemporânea, atualizando a vivência cultural de todos que fazem parte do contexto.

A exposição do Celso Nino com os alunos do 1ºano foi montada na Galeria Villare sob o nome de Celso Ninomiya- Letra e Imagem no fazer poético. Tivemos uma preocupação formal muito grande para apresentar o trabalho do artista como em uma “galeria de verdade”, como disseram muitas crianças e adultos. Colamos um texto de parede com todo o contexto necessário para entender aquela ação, fizemos folders para os visitantes levarem para casa e realizamos visitas monitoradas com todas as turmas da escola.

As visitas com as demais turmas foram um marco para nosso trabalho, que lidou com o espaço expositivo como um espaço formal, com trocas reflexivas entre o grupo sobre o fazer artístico, sobre o artista, amplificando a zona de alcance dessa ação.

Realizamos inclusive uma proposta prática no ateliê relacionada com o trabalho de Celso, e as crianças de todas as turmas se engajaram de maneira intensa, orgulhosas de receberem na escola a obra de um artista.

DSCF2017.JPG


Montagem da exposição Celso Ninomiya - Letra e Imagem no fazer poético na Galeria Villare

DSCF1986.JPG DSCF1974.JPG

Reação de uma das crianças ao saber sobre a visita de Celso e outra criança pintando um cartão de boas intenções para ele.

As crianças foram comunicadas que iriam conhecer o artista e ficaram muito eufóricas com essa notícia. Todos foram contagiados, prepararam presentes, cartões e contaram os dias ao longo da semana, me paravam no corredor todos os dias para perguntar sobre o artista que visitaria a escola.

Em um encontro cheio de curiosidade e emoção, Celso Nino conversou com as crianças, expôs seu modo de trabalhar e respondeu a todas as perguntas, que elas tinham elaborado nas aulas de português, sobre o papel do artista e sua formação. Para a formulação dessas perguntas, as crianças primeiro entraram em contato com a biografia do artista através de um texto preparado por mim e lido na aula de português com as professoras polivalentes.

O diálogo entre a produção das crianças e a produção do artista foi intensificado a partir do encontro presencial do artista no ateliê de arte. Celso se relacionou com as crianças de maneira muito leve e descontraída, embora por dentro estivesse receoso pelo encontro, pois sabia que uma experiência como aquela seria algo marcante na vida das crianças. Sentiu sua responsabilidade enquanto influência sobre o que era a figura do artista para ajudar a compor o imaginário das crianças.

DSCF2044.JPGA experiência com Celso Ninomiya foi extremamente positiva para todo o contexto da escola e superou as expectativas do que havia sido pensado no início do ano. A exposição foi vista por todos da comunidade escolar, pais, funcionários, alunos de outros grupos, gerando reflexões em diversos níveis.
A exposição reflete um esforço do ateliê em se fazer presente no cotidiano da escola enquanto potência do fazer poético, do processo criativo, como uma lógica de pensamento própria presente no campo das artes e não só como uma disciplina presente no currículo.

Gerar essa experiência para as crianças é ampliar a atuação de um campo de conhecimento para o âmbito da realidade, da vida.
Vigotski nos orienta nesse sentido:

O sistema geral da educação social visa ampliar ao máximo os
âmbitos da experiência pessoal e limitada, estabelecer contato entre
o psiquismo da criança e as esferas mais amplas da experiência
social já acumulada, é como que incluir a criança na rede mais ampla
possível da vida. Essas finalidades gerais determinam inteiramente
também os caminhos da educação estética.6

Entender a Galeria Villare como um espaço potencial simbólico e político é inserir a criança num contexto de práticas que dialoga com a realidade social em que a escola está inserida, é uma forma de minimizar a barreira entre o que está dentro da escola e o que acontece do lado de fora.

Tornando nosso espaço permeável, refletindo o que a escola acredita em seu próprio espaço geográfico, não só no discurso, é possível trabalhar as influências externas de maneira positiva para colaborar com a formação cidadã das crianças.

Referências Bibliográficas
GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
GANDINI, Lella ...[et al.] O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de ReggioEmilia. Porto Alegre: Penso, 2012.
GERALDI, Corinta M. G. Cartografiasdo trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
IAVELBERG, Rosa. Para gostar de aprender arte: sala de aula e formação de professores. Porto Alegre: Artmed, 2003.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2008.
LOWENFELD, Viktor, BRITTAIN, W. Lambert. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São Paulo: Editora MestreJou, 1970.
VIGOTSKI, Liev. Psicologia Pedagógica. São Paulo. Martins Fontes, 2001b.


  1. Agradeço a Escola Villare por acreditar no trabalho e por proporcionar espaço e estrutura para que fosse possível sua realização e ao artista Celso Ninomiya, que teve um papel fundamental para a estruturação desse projeto.
  2. IAVELBERG, Rosa. Para gostar de aprender arte: sala de aula e formação de professores. Porto Alegre: Artmed, 2003, pg.10
  3. BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2008, pg. 32.
  4. LOWENFELD, Viktor, BRITTAIN, W. Lambert. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São Paulo: Editora MestreJou, 1970, pg.229.
  5. Trecho de descrição de Celso Nino sobre seu trabalho em email pessoal.
  6. VIGOTSKI, Liev. Psicologia Pedagógica. São Paulo. Martins Fontes, 2001b, pg. 351.