Celina Fernandes

Na minha casa tinha um quarto de costura

Um quarto e não uma sala. Na velha e na casa nova, depois da reforma. O quarto de costura me acompanhou durante a infância e início da juventude. Tão difícil precisar esses tempos. Mesmo imprecisas, as lembranças me ajudam a voltar trinta, quarenta anos.

Outro dia, vi dedais numa vitrine numa dessas cidades antigas em que dedais compõem a história. Dedais faziam parte do quarto de costura. Ficavam num cesto. O cesto de costura de minha mãe. Uma caixa mágica de onde saiam coisas, as mais inesperadas e interessantes. Sianinhas, almofadas para alfinetes e agulhas, alfinetes de cabeças coloridas _ de várias grossuras e tamanhos _, carretéis, zíperes, tesouras de todos os tipos, fitas, botões, colchetes, ilhoses. Era um mundo de formas, cores e tamanhos. Eu não sabia bem para quê serviam.

Gostava de abrir o cesto e de tirar tudo lá de dentro. Fazia isso repetidas vezes e sempre me parecia encontrar coisas novas. Os dedais me intrigavam. Colocava um em cada dedo e me sentia uma princesa, cheia de anéis.

Da máquina de costura, me lembro de que era a motor. Adorava sentar na cadeira de minha mãe e colocar o pé no pedal com toda força. Queria fazer a máquina andar como se fosse um carro. Sair andando pelo mundo. Levava era uma bronca. O que saía andando era a agulha que já estava preparada para costurar. Cresci no quarto de costura, brincando com retroses, escovas para tirar os pelos das roupas, ovos de madeira para cerzir meias, experimentando as roupas das freguesas.

Enquanto a máquina estivesse aberta era sinal de que minha mãe trabalhava numa encomenda. A máquina ficava num console que, quando fechado, parecia engoli-la. Adorava fechá-la. Era como se houvesse fechado um livro, acabado de ler uma história. Que poderia ser reaberta a qualquer momento.

No chão, retalhos de muitas cores e tamanhos, de texturas diferentes viravam roupas de bonecas ou echarpes. Minha imaginação os transformava a cada dia. Podiam, também, ser combinados e compor peças de roupa para mim, minha mãe, minha prima, meu irmão. Essas peças brotavam da criatividade de minha mãe que adorava imitar as roupas que via em vitrines de lojas finas.

Sua habilidade geométrica sempre me deixou curiosa. Ela conseguia visualizar, em manequins ou nos corpos das pessoas, como havia sido feito um vestido, uma calça, uma blusa. Sabia de quanto tecido precisava para fazer tal peça. E cortava compondo o molde, apenas pelas medidas. Uma faixa retangular de tecido, cortes e emendas e um vestido estava pronto para a prova. Os ajustes eram feitos no corpo da freguesa.

Era muito rápida. Às vezes, empacava em algum corte. Virava daqui, virava dali e nada. Sofria, ficava tensa, nervosa como quando a solução criativa ainda não vem. Meu tio lhe dizia, “Leonor, deixe isso para amanhã. Amanhã você acorda com a cabeça descansada e resolve o problema.” Minha mãe o ouvia e muitas vezes no dia seguinte a solução aparecia. Senão, recorria a uma prima que ela dizia ter muita habilidade para cortar.

O léxico do quarto de costura era uma delícia: arremates, caimento, bainhas, cava, gola, colarinho, pala, cavalo, cintura, punho, pregas, nervuras, enchimentos, mangas, largura, dupla largura, comprimento, altura, evasê, transpassado, alinhavar, cerzir, casas dos botões, cós, pespontes, forros, aviamentos. Seda, lese, cetim, jérsei, brim. Tantos saberes essas palavras revelam.  

Aprendi muito no quarto de costura. Lembro-me de algumas coisas, de poucas coisas. De quando pequena que levava bronca porque era muito arteira. Mexia em tudo, tirava as coisas do lugar. Às vezes, minha mãe perdia a paciência, ficava muito brava e me dava uns beliscões. Era o limite máximo. Eu sabia. Sentia, também, que ela tinha um certo orgulho da minha desobediência.

Não aprendi a costurar. Ela dizia que era preciso estudar e colocar um fim nessa tradição familiar em que as mulheres eram todas costureiras. “Não vou te ensinar, não. Você estuda, trabalha e compra roupa feita.” Nem a costurar, nem a tricotar, fazer crochê e bordar. Não aprendi nada disso.

Não me importava em não aprender isso tudo. Queria ser jornalista, viajar o mundo como correspondente internacional. Desenvolvi foi um gosto pela estética. Um certo “olho clínico” se diria antigamente (30, 40 anos atrás!) para o que não “combina”, para o que “não cai bem”.

As crises da adolescência também foram vividas no quarto de costura. O fato era que chegava da escola, almoçava e ia para lá. E lá ficava a tarde inteira nos dias de semana. Com prazer. Minha mãe costurava, cantava, contava histórias antigas e cotidianas. Eu ouvia música, lia, fazia lição e sonhava. Os dramas de menina, ela ouvia, ouvia, levava a sério, dava conselhos em poucas palavras. E, por fim, quando o drama já havia sido suficientemente compartilhado, dizia: “Isso passa. Quando a gente fica mais velha, as coisas ficam mais fáceis.”

Eu queria ficar mais velha mesmo sem saber que as coisas ficam de fato mais fáceis. Queria ficar mais velha para fazer coisas que eu não podia fazer na época. Ficar mais velha era sinônimo de liberdade. Queria poder dirigir um carro que me levasse para fora do quarto de costura.

Hoje, compro roupas feitas e ando pelo mundo. Mas as primeiras viagens foram desejadas, imaginadas, sonhadas no quarto de costura.