Tatiana Fecchio Gonçalves

A ARTE QUE DESEJA O MUNDO

O que compartilhar e elaborar junto a um aluno de onze ou doze anos? De que forma promover identificações entre um desejo crescente de fala e a efetiva possibilidade de fala no grupo ou na sociedade? Como mostrar que a arte é, definitivamente, conhecimento, posição, compartilhamento e expressão?

Desde 2010 venho desenvolvendo, no currículo do sétimo ano da Escola Castanheiras, uma sequência de atividades que, a cada ano, se comprova acertada como uma possibilidade frente a estas questões. Ao final dos trinta e seis encontros, que acontecem aproximadamente ao longo do ano letivo, vejo alunos transformados que se apropriam da possibilidade de fala extrapolando os usos comuns dos recursos e capazes de identificar, nas mais diversas materialidades (pictóricos, videográficos, escultóricos, fotográficos) ideias, sujeitos, desejos de ser e estar.

Este trabalho dá sequência às discussões sobre a diversidade nas formas de representar que se iniciam ao final do sexto ano. Iniciamos nossas discussões no sétimo ano mergulhando numa constatação: De fato há trabalhos que desejam ser parecidos com aquilo que vemos e que possuem, assim, um grande desejo de mimetismo.

Neste trimestre de trabalho, experimentamos produções com a tarefa de ficar parecido com o que eu vejo. São desenhos, esculturas e pinturas nas quais os alunos experienciam como é desafiadora esta proposição. Aproveitamos para olhar artistas que têm e tiveram este objetivo como norte: escultores da Grécia clássica, artistas renascentistas, os artistas acadêmicos e os ultrarrealistas contemporâneos 1. Investigamos a obra de alguns pintores viajantes do século XIX – Eckhout, Frans Post, Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay. Discutimos como, mesmo desejando representar de forma parecida aquilo que viam, alguns deles simplesmente não conseguiam esquecer os modelos aprendidos em anos intensos de formação o que dificultava simplesmente olhar sem projetar uma maneira específica de saber as formas – e neste sentido lemos Imagens Pitorescas: O Brasil pelo Olhar dos artistas Viajantes, de Flávia Custódio 2. Então folheamos os livros didáticos de história dos próprios alunos localizando reproduções de obras destes artistas para discutirmos o caráter de ilustração destas imagens e até que ponto estas pinturas podem ser consideradas imagens da verdade ou imagens de uma verdade.

Destes encontros os alunos saem mais aptos a olhar e a registrar o que se apresenta aos olhos, observadores e cientes de que através de produções artísticas é possível conhecer ideias, preconceitos (aqui no sentido da obra revelar pré-concepções sobre procedimentos ou temáticas) e maneiras de saber o mundo.

No trimestre seguinte uma desestabilização: Como fazer para mostrar algo que não está na superfície dos objetos, ou seja, que não pode ser visto? Com este desafio em mente realizamos diferentes explorações em pintura, desenho e escultura. Os alunos aqui se aproximam de suas subjetividades e percebem que elas têm valor e podem ter forma. É um trimestre intenso em que a tarefa de dar forma àquilo que não se mostra à vista aproxima a todos: Passamos a nos conhecer além da superfície. Para ajudar estes estudos investigamos artistas que também acharam que a representação mimética das coisas era insuficiente para representar aquilo que sentiam e viam do mundo: os barrocos, românticos, expressionistas, simbolistas e surrealistas. Van Gogh e Frida Kahlo têm provocado grandes mobilizações. A obra O Grito, de Edward Munch, permite ver como o que sentimos reverbera e altera o meio que nos envolve. Destes encontros, os alunos saem mais observadores das suas subjetividades, mais cientes de que a vida se dá em muitas camadas, que produções realizadas nos permitem expressar nossas leituras de mundo e que a observação do trabalho de outros nos permite saber de outras subjetividades.

Então chegamos ao terceiro trimestre no qual os alunos já estão prontos para um novo movimento: o desejo da arte de não estar separada da vida. Esta discussão mais uma vez é desestabilizadora aos alunos, como foi desestabilizadora a partir da década de 40 do século XX no campo da arte. Não mais a representação do que se vê nem a representação do que não se vê, mas uma manifestação que se efetiva como inauguração de uma existência. Francis Bacon nos diz que a “... arte é um método de abrir áreas da sensibilidade, mais do que mera ilustração de um objeto” (1953, p.620), inaugura aquilo que antes não havia, a criação sendo menos representacional do que presentacional uma vez que o que é criado nunca existiu daquela forma. Nesse sentido discutimos o uso das molduras e dos pedestais (que sinalizam formalmente a separação entre o que é do campo da arte e o que é do campo da vida) e o desejo de ausência deles. Dentro desta discussão comparamos as obras públicas de Amilcar de Castro com monumentos históricos, os Trepantes de Lygia Clark com esculturas de Rodin, os Parangolés de Hélio Oiticica com as pinturas de Almeida Junior. Percebemos o desejo destes artistas em expandir os limites, extrapolar os contornos predefinidos, dessacralizar seus trabalhos aproximando a obra dos contextos de vida. As experiências que realizamos acontecem no sentido de gerar lastros referenciais neste campo: interferimos em novos ambientes, alteramos as arquiteturas, extrapolamos os murais da escola, intervimos nas circulações... Nos aproximamos da vida daqueles que estão na escola sejam eles alunos, pais ou funcionários. Neste momento vejo sempre uma epifania... As possibilidades expressivas galgam campos ampliados, extrapolam os suportes, se evidenciam na possibilidade de relação com o outro, com o mundo.

Ainda dentro desta discussão galgamos um passo a mais através do seguinte questionamento: E se o artista, desejando estar ainda mais perto do mundo, questionasse a própria instituição museológica e rompesse com os espaços a princípio destinados à arte como o Salão de Arte, a Galeria e o Museu? Para aonde iria este fazer? Vemos então os trabalhos de grafiteiros ao redor do mundo 3, discutimos o processo criativo na apreciação de uma entrevista com Os Gêmeos, realizamos uma reflexão sobre o grafite em sua condição transgressora, e libertária, de usar a cidade como suporte.

Uma discussão proposta a partir de documentário No Muro 4, realizado a partir de entrevistas com grafiteiros, ajuda a elaborar sobre o desenho do próprio percurso das investigações na série: Poderia ainda ser chamado de grafite aquele feito em tela, emoldurado e exposto na Galeria?

Com este percurso e discussões realizadas iniciamos a elaboração de um projeto prático de intervenção no espaço da escola. A cada ano, um ambiente é selecionado e para ele destinada a sequência de atividades descritas abaixo com o objetivo de, ao final, realizarmos a pintura deste ambiente. Neste processo é interessante notar como os alunos, mais uma vez dentro do projeto de arte da escola, experienciam articulações no criar (entre sentir, imaginar, engenhar e fazer). Para realizarem este projeto trocam ideias, trabalham individualmente e coletivamente, consideram questões inerentes ao fazer dentro de um determinado espaço e de um determinado contexto (no caso o espaço escolar em um ambiente no qual alunos de várias faixas etárias circulam e os maiores eventos da escola acontecem) e vivem uma situação de eleição democrática no momento de escolha do trabalho que será efetivamente transposto, por todos os alunos, ao local de destino escolhido.

Elaboração de esboços ao projeto de grafite. Para auxiliar neste processo a parede na qual a pintura seria realizada foi fotografada e esta imagem ampliada em folha A3 sobre a qual os alunos transpuseram seus projetos em papel vegetal.

Depois de realizados os projetos estes foram expostos e votados. As cédulas foram produzidas pelos alunos e xerografadas no setor de Produção. Votaram os alunos do 6ºano (que participarão como autores no ano seguinte), do 8ºano (que participaram como autores no ano aneiror) e os alunos da própria série. Cada um teve direito a escolher dois trabalhos para evitar que a escolha sobrecaisse apenas na votação da própria produção, em especial no 7ºano. As votações foram conduzidas nas aulas de Artes Visuais, em cada uma das salas, a fim de garantir um tempo adequado de apreciação dos projetos. Os seis mais votados seguiram para escolha da direção, coordenação de série e coordenação de área o que, no início do projeto foi informado aos alunos (juntamente com os critérios de seleção que seriam utilizados neste momento de escolha final pela instituição: viabilidade de realização, adequação ao espaço de destino e inventividade).

 
 

O projeto vencedor foi dividido em quatro partes e na sequência quadriculado. As paredes foram também quadriculadas para facilitar o processo de ampliação direta. De posse de uma parte do projeto os alunos se dividiram e se responsabilizaram pela ampliação.

Pronto o desenho, foi iniciado o procesos de pintura que durou cerca de três aulas.

Com a pintura das figuras terminada, fotografamos o resultado e realizamos estudos de cor, no programa Corel Draw, para a pintura do fundo.

A partir da cor selecionada fizemos a mistura das tintas...


...e retornamos ao grafite para finalizar a pintura.

A vivência desse processo efetiva um fazer coletivo e expressivo que se relaciona com o ambiente escolar. As imagens construídas geram reações em toda a comunidade que se vê exposta ao trabalho. Aqui a função de não estar na intimidade do Ateliê mas no mundo, se efetiva.

Para finalizar este projeto assistimos a trechos do documentário PIXO 5 que apresenta, na voz dos próprios pichadores e de pessoas diretamente envolvidas no fazer e estudo da pichação em São Paulo, o contexto que envolve a transgressão, a busca por um espaço de fala, a criminalidade e a possibilidade de socialização e inclusão que este fazer permite dentro das comunidades nas quais ocorre.

Neste momento podemos ver como a intervenção da pichação é ao mesmo tempo subversiva e um dos únicos espaços de fala por parte daqueles que a promovem. Observamos um jovem de idade semelhante à idade dos alunos que se diz analfabeto e que “... sabe apenas ler pixo”. Discutimos que, ao não sabermos ler a pichação, somos colocados num lugar de exclusão e também de analfabetismo. Discutimos quais são os espaços de fala destas pessoas e quais são os espaços de fala dos próprios alunos (nas instâncias de representação já dentro da escola, como no caso dos representantes de sala ou mesmo no grêmio que já iniciou suas atividades no Ensino Médio). Inevitavelmente passamos pela identificação daquilo que é apresentado e posto em pauta pelos pichadores e questionamos quais as nossas falas e contestações. Por fim, aproveitamos a fala de um dos pichadores “... a cidade é nosso caderno de caligrafia” para iniciar uma conversa sobre o caráter estético na pichação em seus grafismos e como ele se aproxima, e se diferencia, do grafite.

Organizar o currículo em torno de discussões e proposições tem se mostrado um caminho de muito valor no aprendizado das expressões no campo da arte, da cultura e da comunicação visual. Aqui podemos aproveitar as discussões de Warburg (2013) e considerar não a arte erudita formal como único assunto das aulas de artes visuais, mas olhar de maneira mais alargada as produções culturais como assunto primordial da formação crítica a uma visualidade que tende a se mostrar naturalizada. Revelar aos alunos os processos, os motivos, as inércias e as rupturas propicia maior consciência do próprio fazer e os leva a questionar formas de estar e ser na sociedade. 

Construir um currículo que evidencia, em sua estrutura, argumentos claros e articulados (e não fazeres pontuais e desconectados) também possibilita maior fluência entre as discussões pautadas ao longo do ano. Ampliar as possibilidades expressivas, diversificando os meios e endossando as autorias, permite uma ampliação de repertórios que traz o aluno à contemporaneidade, ajudando-o a criar o agora e compreender o que se mostra hoje.

O que compartilhar e elaborar junto a um aluno de onze ou doze anos? A esta questão inicial podemos retornar agora e evidenciar que isto dependerá do grupo com o qual lidamos. Dependerá das estratégias por nós identificadas como as mais apropriadas às demandas (re)veladas, no contato com este grupo, com este outro. Além de atender à função da escola como representante de um anúncio de desejos e devires, legalmente anunciado inclusive, devemos sempre manter pulsante o valor e significado que nossas propostas e intervenções possuem na formação global de um sujeito crítico, consistente, expressivo, criativo e propositor junto ao seu grupo e ao seu tempo.

Referencias Bibliográficas

BACON, F. (1953). Catalogue. London: Tate Gallery.

Warburg, A. O Renascimento da Antiguidade Pagã: Contribuições para a História Cultural da Renascença Europeia, Leipzig, B. G. Teubner, 1932. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.


1 - Os materiais de leitura que são utilizados em sala de aula junto aos alunos, e outros materiais complementares aos que desejam ampliar autonomamente as pesquisas ficam disponíveis para acesso dos alunos em um blog criado ao ano: http://artenosetimo.blogspot.com.br/

2 - Reportagem no Portal da Revista DASARTES Edição número 05. Disponível em
http://dasartes.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=102&Itemid=39&showall=1

3 - Em sala de aula assistimos à entrevista realizada com Os Gêmeos (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=VuTi4nZv_cI&feature=related acesso 10/2013), para discutir sobre a questão do grafite e sua possibilidade de exposição no espaço da Galeria. Vimos também trecho de um dos trabalhos de Blu (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=uuGaqLT-gO4 acesso 10/2013) que agrega ao grafite a questão do movimento (conteúdo que será trabalhado mais profundamente pelos alunos no início do 9º ano).

4 - O documentário No Muro (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=R55lO73R7Ng&feature=related acesso 10/2013) é parte de atividade solicitada para casa na qual os alunos, a partir da apreciação do vídeo, extraem algumas informações e se posicionam frente a reflexões propostas tais como: O grafite na Galeria continua sendo grafite?

5 - PIXO, documentário Sobre Pichação e Pichadores de João Wainer e Roberto T. Oliveira produzido em 2009 pelo Sindicato Paralelo.