Vivian Munhoz Rocha

Cultura brasileira como tema transversal no ensino fundamental

Saravá, jongueiro velho
Que veio pra ensinar
Que Deus dê proteção pra jongueiro novo
Pro jongo não se acabar...

(Jongo – manifestação cultural afrobrasileira da cultura do Sudeste)

Há algo que aumenta a curiosidade do mundo sobre nós, brasileiros. Algo que nos torna diferentes dos outros emergentes: o nosso jeito de ser.  A cultura que construímos e que nos dá a argamassa de nação. É ela que marca a nossa diferença e define a nossa posição no mundo atual, como bem explicou Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura.

Segundo ele, ao longo desses últimos cinco séculos em que se forjou o que hoje chamamos Brasil, organizamo-nos em uma sociedade marcada pela diversidade cultural, acumulamos uma larga experiência nas relações interétnicas e no campo da tolerância religiosa.   Consolidamos uma cultura marcada por uma convivência pacífica e integradora com todas as nações do planeta e nos firmamos como um povo que propõe uma moral capaz de incluir a festa e a alegria.

Nós, os brasileiros, somos um povo mestiço, como afirmou Darcy Ribeiro. O Brasil é um país que tem em sua identidade a marca da diversidade cultural. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Brasil é plural em sua identidade: é índio, afrodescendente, imigrante, é urbano, sertanejo, caiçara, caipira...

Esta diversidade cultural é tema transversal ao longo do Ensino Fundamental. Ao mesmo tempo em que aprendem Língua Portuguesa, História ou Geografia, os alunos compreendem as raízes africanas, europeias e indígenas da formação étnico-cultural do seu povo. 

A cultura brasileira é como uma colcha de retalhos: encontramos nela fragmentos de diversas culturas recriadas pela inventividade da miscigenação. Por isso, o Brasil possui uma das culturas mais ricas do mundo! As tradições formam um retrato multicolorido do nosso país, com aromas, sabores, melodias, ritmos e poesias típicas que desenham de forma delicada e fiel a alma brasileira. Trazer todo este conteúdo para a sala de aula é criar espaço para a reflexão sobre nossas raízes brasileiras e nossa identidade.

Quando as naus europeias chegaram às areias quentes do litoral desta terra, hoje chamada Brasil, viviam aqui os povos ancestrais brasileiros, de diferentes etnias.

Os quinhentos anos de ocupação do território foram marcados pela violência e pelo desrespeito aos povos e às tradições indígenas, expressos nas mais diversas formas. O indígena já contava histórias, cantava, dançava e possuía inúmeros conhecimentos sobre agricultura, sobre sobrevivência na floresta e sobre medicina. Possuía, também, uma infinita capacidade de imaginação e muita curiosidade diante do homem branco que chegava e que para sempre mudaria sua vida.  Mas por outro lado, nestes quinhentos anos, o não-indígena se encontrou com a sabedoria de outras culturas, que lhe apresentaram uma forma diferente de se relacionar com o outro, com a terra e com o universo, ainda que a colonização tenha construído sua história sobre as ruínas de milhares de aldeias e índios que ousaram resistir.

Semelhante ao que ocorre com os africanos, os indígenas não constituem um único povo. São, ainda hoje, mais de duzentas etnias, com línguas nativas e culturas diferentes espalhadas pelo território brasileiro. Infelizmente, as escolas, os livros didáticos e os meios de comunicação impuseram uma imagem estilizada do índio e da sua cultura, que faz com que as pessoas olhem para a cultura indígena de forma simplista e equivocada. Em decorrência, o índio do imaginário da maioria dos brasileiros não corresponde ao índio real.

Quando os portugueses iniciaram a colonização do Brasil, trouxeram para esta terra um patrimônio cultural formado por histórias, cantos de trabalho, romances, cantigas de roda e de ninar, brinquedos cantados, quadrinhas, parlendas e brincos. Cantos religiosos, folguedos e danças dramáticas, algumas simbolizando a luta dos mouros contra os cristãos, começaram a ser recriados em solo brasileiro. É importante ressaltar que a cultura de Portugal recebeu, por sua vez, a influência de outras partes da Europa, Oriente e África.  É Gilberto Freyre que, em Casa Grande e Senzala, explica que, quando os portugueses chegaram ao Brasil, já tinham cem anos de experiência na África e mais de um quarto de século de conhecimento da Índia.

Segundo Gilberto Freyre, depois da portuguesa, nenhuma outra cultura exerceu maior influência na cultura brasileira que a cultura africana, que chegou ao Brasil por meio de grandes grupos: os bantos, do Sul da África (Angola, Congo e Moçambique), os sudaneses, da Zona Níger (África Central e África do Sul) e os malês (Mali) – que falavam o idioma árabe e eram muçulmanos. Os sudaneses vieram para a Bahia, os bantos para o sudeste, principalmente para Minas Gerais e Rio de Janeiro e os malês se espalharam pela Colônia. Ainda que na viagem, os africanos nada puderam trazer de pertences. Trouxeram, no coração e na memória, seu maior tesouro: toda uma cultura aprendida na terra natal, um conjunto de saberes, de crenças, lembranças, melodias, ritos e histórias.

As manifestações culturais africanas sofreram um processo de resistência e de recriação em terras brasileiras. Podemos identificar a cultura africana em diversas manifestações no Brasil: danças, folguedos, músicas e histórias. Os africanos encontraram nas festas uma forma de preservar suas tradições. Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre (1858) explica que foram os africanos que animaram e deram vivacidade à vida doméstica e às festas dos brasileiros, marcadas pela melancolia do português e pela tristeza do índio. Os negros trabalhavam quase sempre cantando.

É claro que mais tarde, também outros povos vieram fazer parte da colonização do Brasil e novas influências culturais vieram compor a multiculturalidade brasileira. O imigrante chegou tecendo sonhos e planos ao mesmo tempo em que cantava sua saudade pela terra natal, trazendo como bagagem suas histórias, costumes e crenças, todo um patrimônio cultural para somar, misturar ao patrimônio da terra.

No imaginário do brasileiro, todos estes elementos se misturaram ao clima quente e à paisagem exuberante da terra e resultaram numa diversidade de representações originais, criativas e com uma capacidade de encantar de fazer gosto. 

Com influências de diferentes povos que contribuíram para a formação do Brasil, a cultura tradicional faz parte da memória coletiva dos brasileiros e está presente na literatura, na música e na cultura corporal. Por isso, obras de arte, canções, vídeos, contos, poemas, quadrinhas, lendas, mitos e brinquedos cantados são instrumentos potentes para a aprendizagem da língua materna e, principalmente da História e da Geografia.

No processo de alfabetização, a literatura tradicional é grande aliada. Os contos de fadas, as parlendas, as cantigas de brincar, quadrinhas e brincos são instrumentos de análise e reflexão sobre a língua ao mesmo tempo em que os aspectos sonoros da linguagem, como ritmo e rimas, encantam e divertem. Com eles, as crianças aprendem a escrever.

Mais tarde, os contos populares, as lendas, os contos maravilhosos, os cordéis a e canções tradicionais permitem ao aluno investigar os mistérios da escrita e avançar nos procedimentos de leitor e escritor.

A observação de canções, receitas, festas tradicionais, danças dramáticas e obras de arte ajudam o aluno pouco a pouco a desvendar o passado, a compreender o presente e estabelecer relações entre eles.  Assim, fica mais fácil entender a História do Brasil, a organização do espaço geográfico, as características das regiões brasileiras, as diferentes atividades econômicas do país e as migrações no território nacional.

Esta transversalidade mostra-se especialmente importante, pois contribui para a construção da identidade brasileira de cada aluno. A brasilidade de cada criança se reafirma na medida em que tem a oportunidade de conhecer as tradições de seu povo, apreciá-las, vivenciá-las e reconhecer-se nelas.

Segundo a etnomusicóloga Lydia Hortélio 1,

(...) os brinquedos cantados têm hoje um valor tanto maior quando assistimos a um desconhecimento crescente da Cultura da Criança e, em particular, da verdadeira Música Tradicional da Infância em nosso país e vemos os meninos do Brasil entregues aos caprichos de uma mídia avassaladora, agindo temerariamente na formação das gerações futuras, sem que se possa vislumbrar alguma iniciativa mais consciente, consequente e ampla em favor de nossas crianças. Urge buscarmos desenvolver uma inteligência sensível e fincar em solo brasileiro as raízes de nossos filhos. Essas cantigas, carregadas como são do húmus da Infância, dos mistérios de uma raça mestiça e dos múltiplos arquétipos de nossa cultura, são, por isso mesmo, muito oportunas, num momento em que se faz tão necessária uma ação em prol da descoberta e construção de Brasil.

A cultura popular brasileira é diversificada, poética, inventiva e alegre. É uma cultura que celebra a vida em todas as suas facetas: o amor, o trabalho, o lazer, o profano e o sagrado. Repleta de movimentos, melodias, ritmos, adereços e personagens nos permite a experiência de muitos modos de significar e ressignificar o mundo.

O que justifica escolher a cultura brasileira como tema transversal no ensino das disciplinas curriculares é a possibilidade de os alunos entrarem em contato com a diversidade cultural brasileira desenvolvendo recursos para compreendê-la, identificá-la e, principalmente, vivenciá-la sem estereótipos.   A cultura se torna matéria-prima para a compreensão dos conteúdos escolares e condição necessária para a formação da identidade nacional de crianças e jovens.

A partir da crença de que os professores aprendem pelo mesmo processo que os alunos e que as situações mais potentes de formação são aquelas em que o professor é desafiado a pensar e a produzir, é preciso tornar a cultura tradicional conteúdo da formação.

Muitos professores não conhecem as raízes culturais de sua cidade e do seu estado e não fazem ideia da cultura tradicional que ainda é viva em seu entorno. Então é preciso promover o encontro tornando o contato com a cultura brasileira uma experiência para o professor.

A experiência é capaz de transformar uma prática, trazendo-lhe novo significado. A experiência é conteúdo que passa pelo corpo, pelo sentimento e pelo pensamento.

Quando o que experimenta o professor dentro de si, em contato com a cultura tradicional, mobiliza conteúdos sensíveis e promove uma experiência transformadora, diz-se – de acordo com os pressupostos de autores como Dewey e Larrosa – que ele viveu uma experiência. O conceito de experiência não deve ser entendido como o conjunto de vivências que se acumulam e sim com a forma com que o sujeito trata o que lhe acontece e como atribui valor a isso.

Nesse contexto, informação não é experiência, porque é algo exterior ao sujeito. Experiência é o saber que faz sentido. A experiência resulta em transformação, porque acorda conteúdos internos, promove estados de consciência e sensibilidade que devolvem o sujeito ao cotidiano numa condição superior.

Segundo Jorge Larrosa (2002),

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Desta forma, os conteúdos da formação docente devem aproximar os professores da cultura brasileira por meio de propostas mais estéticas de experimentação em diferentes linguagens e situações que agucem também os sentidos: literatura, arte visual, música, movimento, brincadeiras, degustação de sabores e aromas são possibilidade de promover experiências.

Em decorrência, professores e alunos poderão se apropriar dos elementos da cultura tradicional para enriquecer sua aprendizagem, seu conhecimento e sua vida e poderão atuar como multiplicadores de “brasilidades”, contribuindo assim, para a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Referências Bibliográficas:       

DEWEY, John. El arte como experiencia. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 49ª ed. São Paulo: Global, 2004.
HORTÉLIO, Lydia. Ô, Bela Alice.... – Música Tradicional da infância no sertão da Bahia no começo do século XX – Pesquisa e Direção – Lydia Hortélio, Arranjos – Antônio Madureira, 2004. (CD)
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, nº 19, 2002.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
http://www2.cultura.gov.br/brasilidades


1 -Lydia Hortélio no CD, Ó Bela Alice – Música Tradicional da infância no sertão da Bahia no começo do século XX – Pesquisa e Direção – Lydia Hortélio, Arranjos – Antônio Madureira, 2004.