Jorge Antônio Ribeiro

Aulas

As redes de pescar palavras são feitas de palavras.
Octavio Paz

Lembrança é palavra que faz lembrar. Nove letras, três sílabas e a enorme vontade de recordar. Passear no trem da memória. Rever paisagens antigas. Viajar para trás. Voltar. Aquelas tardes de vento. De chuva branca. Lua pronta querendo nascer. Primaveras lá no horizonte. Verões adormecidos. Outonos desmaiados. Invernos aquecidos. Lembro e lembro-me. Como quem estendesse metáforas no varal e assistisse ao espetáculo das coisas plausíveis. Tangíveis. Inesquecíveis. Aqueles tempos. Aquelas noites.

Aquela noite. Sim. Noite em que eu iria dar a primeira aula de minha vida. Professor era obrigado a usar avental, chamado de guarda-pó. Quase menino ainda, mas acabando o curso de Letras. Usando guarda-pó para guardar o pó do giz, dos gizes. Ficava perto o colégio noturno onde eu iria estrear. Fui a pé, mas veio chuva forte. Quem chegou à escola, então, foi um pinto encharcado, cabeludo, nervoso e feliz. Era eu. E porque me chamavam de professor, de senhor, naquela noite, eu começava a envelhecer. Voltei pra casa, inspirado demais, não dormi. Aquilo não foram aulas. Foi amor. Amor de menino, de moço, de professor que descobria que se descobria e gostava. Feito poesia escrita na lousa. A insônia, então, me fez lembrar todos os professores que eu tinha tido desde o antigo curso primário.

Naquela noite sem dormir, o que seria se eu adivinhasse que passaria por dezoito escolas durante os próximos quarenta anos da vida?

Aulas em escolas públicas e particulares, fazendo coleção de muitos sucessos e de alguns fracassos. Sempre aprendendo a ensinar. Sempre pedindo silêncio e querendo aprender.

Lembrança é uma palavra que faz lembrar; que me faz recordar o início da carreira, quando os inspetores das escolas me confundiam com aluno e quase me davam bronca porque no intervalo das aulas eu caminhava para a sala dos professores, ou porque fumava no corredor. Depois, pediam desculpas e eu gostava daquela pequena confusão. Sentia até certo orgulho de ser tão jovem.

Fui morar, depois, já formado, em uma pequena cidade do interior, num quartinho de pensão, longe dos amigos, longe do grupo de teatro amador, longe do time de futebol, mas era minha primeira experiência de professor titular e doeu um pouco viver aquilo. Mas vivi.

Lá, eu e outro professor fazíamos serenatas. Ganhávamos rosas do jardineiro da praça e deixávamos nas janelas das meninas. Ainda agora imagino que nossos fantasmas estão por lá a fazer serenatas românticas em janelas que habitam a memória. Aqueles violões ainda tocam...

Depois, vim para São Paulo e aqui fiquei. Conheci mestras, mestres, alunas e alunos. Gente maravilhosa que povoou minha vida e de tudo eu me recordo com saudade. Se desse, eu reuniria todas essas pessoas em um grande estádio e daria a elas a minha aula máster. Eu queria aprender tudo de novo. Esqueci nomes, esqueci feições, esqueci datas. Colecionei experiências e cadernos. Guardei olhos e sorrisos. O primeiro poema que eu escrevi no quadro na primeira aula que dei parece ainda estar lá escrito. Ninguém apagou e as letras ficaram brilhando para sempre nas noites da sala cheia de sombras que me assombram a memória.

Lembrança é uma palavra que faz lembrar.  Do tempo em que eu, feliz, tomava seis conduções para ir e voltar do colégio noturno. Dos grupos de teatro que formei com os estudantes. Muita literatura. Muita poesia. Muita música em nossas existências. Lembrança das noites em que fiquei no ponto de ônibus, em pé no banco, me escondendo de tempestades de inverno e de verão.

Muito, muito depois, comprei um carro e ficou mais fácil, principalmente porque era um tempo em que eu dava aulas em três escolas e passava os dias escrevendo datas na lousa. Escrevendo o título da aula e alguma frase bonita, ou a letra de uma canção, ou versos de algum poema, ou o trecho de um romance amado. Passava os dias a fazer chamadas e a escrever nos diários de classe.  E foi assim. Já não usava mais guarda-pó e o giz foi colando nas mãos, nas roupas e na garganta. Por fora e por dentro.

A lembrança é um pó de giz que fez grisalhos os meus cabelos e amadureceu meu espírito como um fruto a se preparar para a colheita.

A lembrança pode ser um afago que encanta ou uma faca que risca e sangra. Em minha memória de professor, há muito mais carinhos do que lâminas. Há um livro escrito e publicado dentro de mim e eu o leio todos os dias sempre com uma poética sensação de que o sinal vai tocar e as aulas começarão outra vez.