Helena Verderamis Sellani

Leitura, escrita e práticas sociais

Um universo tão rico de possibilidades de leitura e escrita dentro da escola pode se configurar num desafio: o que escolher como mote para o desenvolvimento de uma boa sequência didática de Língua Portuguesa cujo principal objetivo seja tornar os alunos melhores leitores e escritores? Muito já se falou a respeito da necessidade de aproximação entre os projetos e sequências didáticas e o universo infantil. Mas será mesmo que criança só deve ler e escrever sobre coisas de criança? Sabemos que uma imensa variedade de assuntos quando bem propostos podem virar ótimos temas para se ler e escrever.

“As crianças gostam” é significativa, mas não é suficiente como justificativa para nenhuma proposta séria! A complexa tarefa de envolver a criança nos processos de leitura e escrita, portanto, deve se valer de outros argumentos, sobretudo, daqueles que levem os alunos a se engajarem nas práticas sociais. Afinal, para que escrevemos? Para quem escrevemos? O que escrevemos? São perguntas indissociáveis, já que escolher um ou outro gênero textual para produzir, por exemplo, vai depender da intencionalidade do texto e do destinatário desta escrita.

Pensando nisso, é possível propor situações de comunicação de sentido real e com clara função social. Assim surgiu a proposta da Exposição Temporária de Brinquedos e Brincadeiras, inspirada no projeto sugerido no Cardápio de Projetos do CEDAC. O projeto foi desenvolvido com alunos do 2º ano do Ensino Fundamental durante, aproximadamente, seis meses e teve como prática social a montagem da Exposição de Brinquedos e Brincadeiras, na qual os alunos puderam exercer a função de curadores e monitores.

O projeto foi tomando forma a partir da provocação inicial: como podemos saber sobre o modo de vida das pessoas de antigamente? E como as pessoas no futuro poderão saber sobre o nosso modo de vida hoje? Em meio a dúvidas e questionamentos, os alunos aceitaram o desafio de empreender uma pesquisa sobre brinquedos e brincadeiras do passado. Neste ponto, já tínhamos em mente que aproximar os alunos de alguns gêneros textuais faria todo o sentido no decorrer do projeto. Alguns desses gêneros comporiam as práticas de leitura, outros seriam nossos desafios de escrita.

Também sabíamos que a montagem de uma exposição como essa demandaria a participação das famílias. O produto final seria, além da exposição, um catálogo das peças expostas elaborado pelos alunos. O que ainda não sabíamos era que o projeto envolveria uma gama de gêneros textuais muito maior, que daria suporte ao trabalho e conferiria cada vez mais proximidade dos alunos às práticas sociais de acesso à informação e ao conhecimento.

Para inaugurar a parceria com as famílias foi solicitada a escrita de um relato pessoal de um dos pais sobre seus brinquedos e brincadeiras preferidas na infância. A decisão se mostrou muito acertada quando, ao recebermos os textos, víamos ali uma riqueza de informações e, acima de tudo, de experiências, que além de fonte de pesquisa também desencadeou um importante processo de análise sobre o modo de vida das pessoas de “antigamente” comparando com a vida de nossos alunos. Além disso, o esmero nos relatos dos pais inaugurou uma nova categoria de textos para aquelas crianças: os textos que são escritos por gente comum para serem lidos por gente comum, e isso foi de uma riqueza ímpar!

Neste ponto, os alunos leram textos informativos e outros relatos que traziam mais repertório sobre o que era ser criança na época de seus pais e avós. Assim já se via que o projeto, que tinha em seus objetivos principais conteúdos de Língua Portuguesa, também se estendia para outras disciplinas 1.

O passo seguinte foi solicitar aos pais que enviassem à escola seus brinquedos de infância. Nem preciso dizer que as crianças grandes que acompanhavam o projeto se deliciavam a cada “nova” peça que chegava: Genius, o ursinho Peposo e sua esposa Peposa, a boneca Mãezinha, os carrinhos Pegasus e Colossus, aqueles patins brancos, já amarelados claro, o bilboquê, e até o carrinho de rolimã, além de algumas peças artesanais costuradas ou esculpidas à mão encantavam crianças de hoje e de ontem. A escola recebeu centenas de brinquedos e era necessário que fizéssemos uma seleção.

Mas como é que se selecionam peças num museu para uma exposição? Era hora de visitar um museu e conversar com quem entendia do assunto. Aqui entrou em cena um novo gênero: a entrevista. Foram gravadas entrevistas com uma monitora e uma curadora de um museu de São Caetano do Sul, nossa cidade. Depois, essas entrevistas foram transcritas pelos alunos e viraram textos expositivos de apoio ao projeto.

Ao selecionar as peças que seriam expostas, o trabalho de curadoria iniciou-se e, com ele, um significativo processo de pesquisa que envolveu consultas à internet, textos informativos e embalagens de brinquedos que pudessem revelar informações para o catálogo. No entanto, para aquelas peças artesanais foi preciso recorrer novamente à entrevistas e relatos de familiares. Descobrir que uma carta escrita por um avô poderia ser fonte de informações históricas foi fascinante!

Também foi importante a leitura e análise de dezenas de catálogos de exposições e museus coletados pela equipe de professores. Esses catálogos traziam formas diferentes, mas também mostravam regularidades e serviram de bons modelos (reais) para o nosso catálogo.

Assim, a seleção de informações foi sendo feita e organizada pelos alunos de modo que apenas o que era relevante ficasse escrito no catálogo. Os alunos também perceberam a necessidade de escrever um texto que apresentasse a exposição. Além disso, como tinham posse de muitas informações e curiosidades sobre os brinquedos e brincadeiras foi proposto a eles que organizassem esse conteúdo em divertidos “Você Sabia”, que serviriam para informar, divertir e compor o espaço de exposição.

O trabalho com textos instrucionais também teve destaque, pois as brincadeiras escolhidas para figurar na exposição foram pesquisadas, brincadas e organizadas em textos que tornassem claro seu modo de brincar para aqueles visitantes que quisessem experimentá-las.

Após ler, pesquisar, ouvir, falar e escrever muito sobre o assunto, além de brincar, é claro, com o catálogo pronto, os alunos sabiam o que queriam contar sobre cada peça da exposição. Também tinham um repertório incrível de curiosidades sobre os brinquedos e brincadeiras e poderiam presentear os convidados com toda esta riqueza. Tempo de planejar a monitoria. 

A última tarefa foi escrever um convite aos pais e amigos para a Exposição Temporária de Brinquedos e Brincadeiras, organizada pelos alunos do 2º ano da Escola Villare. Ao se engajarem nesta prática social, os alunos se apropriaram de conhecimentos de História, de Arte e de Educação Física e, acima de tudo tornaram-se melhores leitores e escritores.

Bem, o dia da exposição e a monitoria realizada pelos pequenos, isso é conversa gostosa para uma outra hora!

Foi importante perceber que a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade não estão dadas de antemão. A conversa entre as disciplinas acontece por uma exigência das práticas sociais. Quando nos engajamos nas práticas sociais, não há como circunscrever um projeto a uma única área do conhecimento. As articulações saltam aos olhos de quem delas participa!


1 - Foi importante perceber que a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade não estão dadas de antemão. A conversa entre as disciplinas acontece por uma exigência das práticas sociais. Quando nos engajamos nas práticas sociais, não há como circunscrever um projeto a uma única área do conhecimento. As articulações saltam aos olhos de quem delas participa!