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Celina Fernandes

Berliner Ensemble

Manhãzinha de outono. Nos ouvidos da lembrança, as calhas tilintavam os primeiros pingos da garoa. As ruas molhadas e escorregadias. As marcas dos sapatos estampadas no chão. Andava apressada como se o ritmo do caminhar pudesse me fazer chegar ao fim. Meias finas, vestido e capa. A bolsa a tiracolo para deixar as mãos livres. Andava, andava e não chegava nunca.

A cidade grande. Andar um quarteirão era como percorrer uma pista de corrida em círculo.  Quando se sentia o alívio de cruzar as ruas, surgia outro quarteirão tão grande quanto o anterior. E a chuva fina, a capa que não cobria o suficiente, a sensação de umidade pareciam fazer a caminhada mais lenta, mais penosa.

Tinha a sensação de que andava sempre no mesmo lugar. As fachadas dos edifícios não diferiam muito. Bege e cinza, cuja diferença era quase imperceptível às vezes, compunham a paisagem repetitiva. Tapumes cercavam obras. Uma cidade inteira em obras. Guindastes por todos os lados marcavam o horizonte, encobriam a visão daquele que queria ir além.

Caminhar para chegar. O número de pessoas que se concentravam em torno dos monumentos não escondia a face triste da cidade. Passar entre elas era como se houvesse mais um obstáculo para se atingir o fim. Pensava se as fotos tiradas dos celulares poderiam dar conta daqueles edifícios enormes, daquela ausência de cor, do cheiro de chuva que não vai embora. 

No mapa, tudo parecia mais fácil, mais perto. Todos os planos feitos antes da partida não se realizavam. Impossível chegar. O metrô com suas estações insípidas e vazias não ajudava. Era preciso andar, andar. Por vezes, a caminhada dava num lugar que despertava o interesse. Um dos muitos monumentos do luto. Do luto que também não tinha fim. Sempre se podia chegar a ele caminhando mais um pouco.

Sentia-me bem apenas defronte a um pequeno teatro à beira do rio. Ali a cidade parecia menor, o amarelo claro do edifício, a lembrança do dramaturgo, as marcas da cidade de antes da guerra. Juntos era o pedido que se fazia. Pedido que me fez passar inúmeras vezes em frente a suas portas fechadas. Tentava ver alguma coisa lá dentro. Inútil. Inútil compensar a frieza com um teatro fechado.

Assim mesmo, ele me atraía. Buscava nas ruas dos arredores o tempo que passou. A estação de trem, os bares, as mesinhas nas calçadas, o rio. Tomei um barco para ver se de lá avistaria sinais de vida. Se a caminhada não levava ao fim, talvez o barco me ajudasse a percorrer a cidade ainda dividida, coração sitiado.

Não se vai muito nas águas mansas de onde se avistam edifícios em tons terrosos. Eles logo dão lugar ao aço e ao vidro daquilo que em breve serão os monumentos da modernidade. Vidros em tom azul brilham e querem expressar um tempo de transparência. Como se ao poder ser visto por dentro, um edifício pudesse mudar suas linhas retas, o traçado explícito da desilusão.

Povoada de prédios e de gente, é cidade fantasma. Os túmulos do passado recente não permitem a redescoberta. Enterram qualquer iniciativa de mudança, levam a ruas cujos nomes revelam o que se perdeu.