Luiza Mandetta e Leonardo Cordeiro

Violência e imaginação

Quando o cotidiano desce do ônibus

Entre as bombas e as barricadas de junho, outro momento pulsa, velado. O que os instantes capturados das ruas pelas câmeras carregam, mas não mostram, é o suor derramado em tantos  ônibus, em tantos trens, por tantas horas, todos os dias. O sangue que jorrou era o mesmo que sempre correu - silencioso embora ardente - nas veias e artérias da cidade-máquina.

Derrame? Coágulo? O distúrbio congênito que vinha se agravando afinal interrompeu o fluxo. Não eram mais os ônibus, as motos, os automóveis que tomavam as ruas. Eram as pessoas. A pé. E forçavam as outras a descer para o asfalto. O burburinho do interior dos vagões cresceu e invadiu as ruas. Se os trens não aparecem nas fotos, o dia a dia de empurrões, aperto, espera e humilhação, e também de sonho, devaneio, conversa e riso, certamente ecoa em cada uma delas.

Pulsavam nas ruas, dilatadas, distendidas, a violência e a imaginação do momento do transporte. Momento que é lugar.

"O caminho é tão importante quanto o destino. Ir para um lugar já é, objetivamente, um lugar em si." Mas o deslocamento enquanto lugar não tem lugar no espaço-mercadoria da metrópole. Dominado pelo lucro, torna-se não-lugar, meio para fins alheios. Literalmente: quando o salário não paga o espaço privado do carro, não sobra lugar nem para os dois pés no chão – uma realidade que não nos deixa lugar. "Todo vagão tem um pouco de navio negreiro"; o transporte é uma escravidão.

Periferianos, distantes estamos
Eles querem manos, minas
Distantes dos planos
...
Para o pobre dificuldade é a real
A liberdade dos carros correndo na radial
Quem não pode faz um investimento mensal
Uma cota considerável quando soma o total

A liberdade de ir e vir converte-se numa necessidade onipresente de sobrevivência: o ir e vir do trabalho. Mobilidade imobilizante que tranca as portas, que fecha a cidade para seus moradores. A casa é um intervalo entre um ônibus e outro. O sono pesado de quem desmaia na cama no fim do dia é um sono sem sonhos.

A prisão no não-lugar do deslocamento expulsa o pensamento para o não-lugar do devaneio, do sonho acordado: do utópico. Ora, "esse breve respiro do inferno da jornada de trabalho, que pode abranger desde o namoro e a amizade às contas e a imaginação de fantásticos mundos imaginários, se dá, tipicamente, no transporte coletivo. Esse devaneio, que... prefigura e exponencializa as miseráveis condições de trabalho da metrópole, pode aparecer sob a forma de uma lembrança, um causo, uma piada… às vezes acontece em voz alta e pode até se transformar em conversa."

"O que acontece nesse devaneio, que afinal deflagrou o que vimos, é produto de um sofrimento social profundamente ligado ao mundo do trabalho."

Ao roubar de nós as nossas forças, o nosso tempo, o nosso espaço, o transporte perpetua a violência do trabalho. Num roubo escancarado diante do silêncio resignado de todos os olhares, o transporte nos separa de nós mesmos e da cidade que produzimos. Cada bomba, cada tiro daqueles que mergulharam a cidade num luto generalizado em uma atípica quinta feira, era um eco da violência do transporte coletivo. O confronto represado todos os dias transbordava para o asfalto, abrindo a ferida latente dos ônibus, dos vagões, das lotações.

Quando a violência do real, quando a miséria do possível não nos dão lugar, nos impelem ao impossível – a utopia. A resposta ao absurdo do transporte, à realidade que nos nega é a negação da realidade. Em junho, o possível teve de ceder aos ônibus quebrados, às barricadas, aos saques. Ao invadir as ruas, o devaneio faz-se política do impossível: contraria o curso inexorável do real. A tarifa volta para trás.O real se dobrou ao sonho acordado – ardente e silencioso – das longas horas no ônibus.


Algumas frases tomadas de:

um texto do Daniel Tertschitsch: “Deslocamento é lugar” em Urbânia 4, 2010
http://urbania4.org/2011/02/14/deslocamento-e-lugar/

uma música do Rincon Sapiência: “Transporte Público”
https://www.youtube.com/watch?v=giWImxdOXAU

uma aula pública do professor Paulo Arantes: “Tarifa Zero e mobilização popular”
http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/03/tarifa-zero-e-mobilizacao-popular/

e um grafite de Bruno Perê (relendo a letra de O Rappa):
https://www.flickr.com/photos/bpere/5975966096/