Mary Simões

O Golpe depois do golpe

Sempre gostei da Escola, de tudo o que constitui o Escolar, de Educação. Minha família logo cedo me ensinou sobre ela. Até o tempo em que minha lembrança alcança, meus irmãos indo e vindo, os primos da região rural almoçando em minha casa depois das suas aulas e antes de voltar para a roça. Estávamos no Sul de Minas Gerais.

Em casa, todos herdamos a tradição de estudar em escolas públicas, a estabilidade curricular contribuía para que as despesas pudessem ser controladas, cabendo no orçamento de meu pai e minha mãe; assim, muita coisa passava do mais velho para o mais novo. O livro, por exemplo, porque era caro, era o mais precioso dos itens; presente pela sua ausência. Nas conversas entre um almoço e outro é que se decidia de que ex aluno ginasial da pequena cidade de Piranguçu seria o livro comprado, para ser utilizado por um dos filhos dos Simões ingressantes no então ginasial ou colegial. Foi assim que comecei a gostar deste tal livro, coisa importante esta, difícil de conseguir!

Em 1973 chegou minha vez, entrei no primário, onde na verdade já estivera por muitas e muitas horas, nas brincadeiras de faz de conta, com alunos que eu inventava. Minha mãe conta que eu era uma professora brava, muito brava! Na escola, agora em São José dos Campos, a cidade que orgulhosamente sedia o Centro Técnico Aeroespacial e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, era bem diferente da que eu fantasiava. Nela, aprendi a andar em fila. Correr era um ato gravíssimo, assim como conversar na sala de aula. Quanto maior o silêncio, melhor era a turma. Eu tive o dom, por sorte, de não me deixar levar por nada que me tirasse a alegria, passei oito anos sem compreender o motivo de tanto rigor, mas enlevada com aquele mundo de encontros; ali eu estava crescendo. Mais quatro anos e eu tinha estado no então Magistério, onde confirmei minha tentação, minha invenção de criança: ser professora! Ali também não entendia o motivo pelo qual meu professor de Física, no primeiro ano, ia até a porta da sala e olhava de um lado e de outro do corredor, antes de fazer qualquer comentário. Ali também conheci professores que me motivaram, que furtaram da restrição, do comando de ação contra a subversão, a possibilidade da transgressão.

Foi fora da Escola que descobri que sou da geração que veio ao mundo durante a chamada Revolução de 1.964, nasci precisamente dois anos depois da instauração do Golpe, coexisti com ele por 19 anos. Sobrevivi, apesar da pseudoproteção do poder, para o poder. Sou da geração em que uma grande maioria é conservada alheia aos efeitos de uma época. Não atuei, não testemunhei... Como se não estivesse lá.  Estranho é que exatamente isso parece ser o que define meu tempo. Sou da geração em que o grande Golpe foi saber do golpe.