Edith Chacon Theodoro

Aula com poesia

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
Manoel de Barros 1

Sou professora desde o tempo em que dava aulas às minhas bonecas. Logo que me graduei em Letras dei aulas na PUC/SP, onde me formei, e numa escola particular, cujos alunos eram bem irreverentes e provocadores. Após um ano, larguei as aulas da faculdade e desde essa época, continuo trabalhando com jovens do EFII, além de ministrar oficinas e contribuir com a formação de professores.

Hoje estou aqui, com um friozinho na barriga, confesso. Ao escrever este texto, lembrei-me de algumas pessoas que me levaram à poesia: minha mãe, meu pai, meus professores...

Quando comecei a dar aulas, sabia o que não queria. Não queria alunos passivos, quietos, com medo de enfrentar o desafio da língua portuguesa. Lembro-me de um texto em que a escritora portuguesa Isabel Alçada, dizia que para ser um bom atleta não bastava ir a estádios, observar ou ler manuais de instruções, ou seja, se é preciso de muito treino para ser bom atleta, por que não para ser um bom leitor e escritor?

Meus alunos são autores de coletâneas de textos escritos e ilustrados por eles.  Muita leitura, muita discussão, muita fantasia, muito trabalho e respeito com a língua portuguesa.  Transformar as aulas em oficinas de poesia sempre fez parte dessa empreitada. Desarrumar a sala, ir para o pátio, dar uma volta no quarteirão. Sentir os cheiros. Ouvir o silêncio e os ruídos. Tocar no outro, treinar o olhar e os cinco sentidos. Criar um ambiente afetivo e propício para que os alunos se sentissem desafiados, pudessem provocar e se sentir provocados.  Para que se perguntassem. Para que fossem tocados pelo texto de alguma forma. Para que, repito, não sejam passivos diante do mundo. Para que pudessem sonhar e viver diferentes aventuras embarcados nas tramas das benditas, malditas e inquietantes personagens. Para que gostassem de ler e de escrever, sem medo.

Sim, é tarefa da escola despertar o gosto pela leitura e pela escrita e por que não pela Poesia?

Despertar o desejo de conhecer, ler, ouvir e escrever poesia. Com Neusa Sorrenti: “Seja dístico, quadra, soneto, haicai ou limerique, os poemas devem fazer parte das sugestões de leitura para a criança e o adolescente. Eles os escolherão em algum momento. A princípio folheando o livro, se interessando por um aqui, outro lá. Depois, lendo mais demoradamente, fruindo com gosto, sob o olhar do mediador ou solitariamente. Não importa. Poesia é arte e, como tal, precisa do leitor como interlocutor. E uma vez conquistado, tem-se o leitor de poesia.” 2

O gosto pela leitura de poesia também se ensina, mas é preciso que o professor esteja envolvido, disponível, e antes de mais nada, que goste de poesia.  A mediação do texto passa pelo encantamento com o qual o professor o apresenta para seus alunos, pelo vivenciar juntos o ler e o fazer poéticos. Uma aprendizagem aos pares, como diz Freire “Educar demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando aprende, outro que, aprendendo ensina.” 3

O ensino da poesia é ensino da descoberta. Ele contribui para a formação linguística, cognitiva, afetiva e psicológica. Ele completa e enseja vazios. Por isso, é importante que se crie, na sala de aula, um ambiente de liberdade e criatividade, a fim de que o aluno possa vivenciar a poesia e se expressar. Não basta apresentar-lhe alguns poemas, mas que sejam frequentes e de qualidade. Também é preciso somar outros elementos a essa aproximação: conhecer as necessidades e os gostos de seus alunos, interagir, desconstruir. Como diz Manoel de Barros, desaprender, para aprender de novo, transformar, recriar. E ter prazer em compreender, em descobrir, em construir e reconstruir sentidos.

Sempre compartilhei com meus alunos não só a dificuldade que é viver, mas também escrever e ler. Escrevendo, defrontamo-nos com o branco da página, com o que ter a dizer, com aprender e lutar com as palavras, com saber usá-las, selecioná-las, combiná-las, para nos exprimirmos ou, simplesmente, para nos abrirmos para o mundo, como um livro.

Em nossas aulas, os exercícios de desinibição, ou primeiros ensaios poéticos, por meio de jogos que tentam romper com o conhecido. Muita brincadeira com as palavras, para depois, usufruir das leituras, do alimento, das discussões que o texto oportuniza e, enfim, passar a escrever. Dar um tempo, debruçar-se sobre os textos, aplicar os recursos poéticos analisados e os conhecimentos linguísticos, compartilhar, reescrever, publicar.

Durante essas aulas, também me expus, desengavetei meus poemas, coloquei-os para serem apreciados, reescritos, reelaborados.  Assim, nasceu o “Simplesmente ler” e tantos outros livros, que ainda aguardam ser publicados. Como é difícil esse caminhar de escritor...

Quando escolhi levar a poesia aos meus alunos, pensei-a como um presente embalado lindamente num papel colorido, cheio de laços de fitas.  Sabe aquela embalagem que lhe traz uma sensação gostosa e que aumenta seu desejo de desembrulhar o pacote? Assim, pensei a Poesia.  Como um presente! Tanto a de outros autores como aquelas que eu escrevia.  Não como um presente qualquer e, sim, desafiador também: palavras cheias de mistérios para serem descobertos. Palavras carregadas de infinitos sentidos, que, ao serem desembrulhadas, ressignificadas revelam o novo, a surpresa, o belo.   

Poesia como encantamento. Poesia como um brinquedo, um jogo com infinitas combinações. Um jogo de receber e ter, necessariamente, de refazer o texto. Poesia como um mosaico ou como um caleidoscópio. Parado, nada mais é do que um aglomerado de vidrinhos coloridos. Mas, ao ser girado, revirado com precisão, que experiência fascinante!  A cada movimento uma surpresa, um novo desenho, uma nova coreografia.

A Poesia como Arte, que provoca, no leitor, brilho nos olhos, sorriso nos lábios, movimento do corpo, leveza, emoção, inquietação, silêncio, enfim, devaneios que despertam o que há de mais bonito em ser criança, porque a Arte “instiga, estimula nossos sentidos, de forma a descondicioná-los, isto é, a retirá-los de uma ordem preestabelecida, sugerindo ampliadas e inovadoras possibilidades de viver e de se organizar no mundo.” 4

Poesia como um desfazer e refazer, fazendo. Palavras que somente ao serem combinadas e recombinadas em infinitas leituras e reescritas ganham sentido.  Poesia como encontro do ser humano com o sentido da vida. Como resgate do olhar primeiro e criativo da criança sobre o mundo.

Espero que os educadores levem a poesia para seus alunos, que reconheçam, por experiência própria, a função e importância da poesia na vida das pessoas. Que entendam que, quanto mais cedo a poesia entrar na vida de alguém, melhor.

Como nos diz Maria Alberta Menéres: 5

O Poeta faz-se desde pequenino...
O Poeta faz-se aos 10 anos
O Poeta faz-se aos 11 anos
O Poeta faz-se aos 12 anos [...] aos 18anos [...]
O Poeta faz-se
O Poeta
Poeta                       
                                                          
Para encerrar essa conversa, retorno a Manoel de Barros que, ao homenagear o pintor boliviano Rômulo Quiroga, diz “que a expressão reta não sonha/ Não use o traço acostumado./A força de um artista vem das suas derrotas./ Só a alma atormentada pode trazer para a voz um/formato de pássaro./Arte não tem pensar:/O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê./É preciso transver o mundo./Isto seja:/Deus deu a forma. Os artistas desformam./É preciso desformar o mundo:/Tirar da natureza as naturalidades. [...] 6


1 - Manoel de Barros, Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios em O livro das ignorãças 1ª Parte - Uma didática da invenção,  Rio de Janeiro: Editora Record, 1994.

2 - Neusa Sorrenti, A poesia vai à escola – Reflexões, comentários e dicas de atividades. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 67.

3 - FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 26.  

4 - Kátia Canton - A pulsação do nosso tempo Matér ia publicada na Edição 3 - Novembro de 2005 - Arte e Cultura  (www.revistaondajovem.com.br/materiadet_cont.asp?idtexto=19)

5 - Maria Alberta Menéres, O poeta faz-se aos 10 anos  Editora: Edições Asa. Ilustrador: Rui Truta. Alfragide, Portgual, 1999.

6 - Manoel de Barros, “As lições de R.Q.” em Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, p.75.