Celina Fernandes

Livros, livreiros, bibliotecas e bibliotecários

Em minha casa não havia muitos livros. Meus pais eram pessoas simples que haviam completado o antigo curso primário. Liam, mas não adquiriam livros com frequência. Compravam todas as obras que a escola solicitava. E esses eram os livros que tínhamos. Além das enciclopédias é claro: Barsa, Conhecer. Os livreiros costumavam bater de porta em porta. Fazia parte da vida de uma família de classe média, na década de 1970, receber essas pessoas em casa fez ou outra.

Meus pais eram exímios contadores de histórias. Da vida. Minha mãe se punha horas a falar de suas peripécias e das artes de seus irmãos. Cansei de ouvir a história de que meu tio Modesto saía de casa para ir à escola - havia conquistado uma bolsa de estudos no Colégio São Luís, um acontecimento familiar e de classe ‐ e ia sem pestanejar para o campo de futebol que havia na Av. Dr. Arnaldo próximo à Faculdade de Medicina. Uma vez (me parece que foi a última) foi visto por uma das irmãs que deu com a língua nos dentes.

Meu pai gostava mesmo era de contar histórias de trens. Ferroviário de carteirinha (me parece que isso ocorre a todos dessa profissão), o dia em que começava a falar de trens que descarrilaram, dos maquinistas de nomes estranhos que ele conhecia muito bem - e julgava que conhecíamos também já que os relatos nos eram familiares - não havia quem desgrudasse da narrativa. E a pergunta: conta mais uma história? nem precisa ser feita (embora fosse) porque entusiasmo para falar de trens nunca faltou ao Seu Antônio.

A literatura me foi apresentada na escola. Lia tudo que os professores indicavam e exigiam. Lia com todas as dificuldades que uma criança e depois uma jovem tinha para ler os textos clássicos de nossa literatura. De língua portuguesa do Brasil e de Portugal. A literatura estrangeira a mim não chegou pela escola, mas pela Cultura Inglesa e pela biblioteca pública municipal. Não me lembro dos critérios que me levavam a retirar um livro lá. Talvez uma capa interessante, um autor já lido na escola, um título que me chamou a atenção, a indicação da bibliotecária...

Tinha uma admiração profunda por essa mulher. Dona Eunice, acho. Ela sabia tudo de livros. E exatamente onde eles ficavam. Me lembro perfeitamente de seu rosto, de seu sorriso e de sua seriedade. Ai de quem atrasasse a devolução! Ficava sem retirar livros por quinze dias. O que para mim era a morte.

Era assídua frequentadora do lugar. A biblioteca Álvaro Guerra ficava a menos de dez minutos de minha casa. Gostava de percorrer o caminho que me levava a ela. Ruas de árvores enormes, que projetavam sombras acolhedoras, de casas sem muro e sem portão, que aguçavam a curiosidade de criança, e de poucos carros.

Entrava pelo portão do fundo para poder ficar mais tempo nessa rua. A Av. Pedroso de Moraes, embora muito tranquila na época, era uma avenida. Pelo fundo também se podia ver todas as dependências da biblioteca. Era preciso dar-lhe a volta quase toda para se chegar à porta de entrada. Havia uma sala de arte, onde nunca pisei por medo de não saber o que fazer lá dentro, a sala em que ficavam os livros destinados ao empréstimo e uma sala de estudos.

A sala de estudos era a mais convidativa. Aos olhos. Fui poucas vezes lá fazer pesquisa, afinal tinha as enciclopédias em casa, mas não havia dia em que fosse à biblioteca e não desse uma olhadinha nessa sala. Enorme, cheia de mesas redondas e cadeiras de madeira pesadíssimas. As estantes iam do chão ao teto. As portas de ferro e vidro se abriam para o jardim. O assoalho de tacos brilhava. Era certo que se aplicava cera e passava enceradeira. Não se questionava a imposição do silêncio exibido num cartaz. A austeridade do lugar e dos profissionais que ali trabalhavam configurava o ambiente.

A mim, com cartaz ou sem cartaz, austera ou não, a biblioteca era lugar de silêncio. Lá conversava comigo mesma. Na parte de trás do edifício, havia uns bancos de madeira delicadamente distribuídos num jardim. Nunca demorei muito tempo neles, mas era comum me sentar um pouco. Por mais que tenha ido à biblioteca não sei quantas vezes, ao longo de anos, aquele lugar sempre guardou um ar de mistério. Sempre achei que nunca a conheceria totalmente. E de fato não a conheci.

Por um tempo, ao lado da biblioteca e no mesmo terreno, se reunia um grupo de escoteiros. Seus movimentos me atraiam, embora nunca tenha querido me juntar a eles. Olhava com olhar meio intrigado, não sabia muito bem qual era a finalidade daquilo tudo. Gostava mesmo do campinho (ou do terreno que virava campinho) que se projetava para aléém da casa de madeira dos escoteiros. Lá os meninos jogavam bola e nós, meninas, nos reuníamos para acompanhar as partidas e nos aproximar deles.

Quando o campinho estava fechado, o futebol era jogado na pracinha ao lado ou nos canteiros centrais da Av. Pedroso de Moraes. Os canteiros eram muito mais largos do que são hoje e a avenida, nos finais de semana, praticamente vazia.

Voltei lá, há alguns anos, com um amigo querido, para compartilhar minhas lembranças de infância e início da juventude. A biblioteca me pareceu muito menor do que eu imaginava. Ainda a força das minhas lembranças, a familiaridade do lugar e meu olhar curioso diante do mistério não desvendado.