Pedro Bonetto

Tinku: entre a ontologia, a metafísica e a estilística do viver

Tinku? "O que é Tinku?". Creio que essa seja a primeira pergunta que nos vêm à mente. A segunda provavelmente: "Para que serve?". Mas responder tais questões é o objetivo de dois materiais jornalísticos e não desse artigo. Não quero correr este risco! Desse modo, convido o/a amigo/a leitor/a a acessá-los! O primeiro deles é a matéria do jornal Folha de São Paulo, intitulada: "Os impasses em torno de um ritual boliviano de lutas ", o outro é um vídeo produzido pela TV Folha.

A proposta desse ensaio é apenas desconstruir o modo como os dois materiais falam sobre o Tinku, e para isso, tomamos como referência algumas considerações pós-estruturalistas inspiradas em autores como Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche e Michel Foucault.

Ontologia (o Ser) do Tinku

Em diversas passagens o referido material se utiliza da perspectiva ontológica de análise, ou seja, procura uma definição essencialista e fundamentalista do Ser do Tinku. Para isso recorrem a classificações e comparações deste signo com outros que historicamente já foram capturados pela linguagem estruturalista. Tentam defini-lo a partir de diversas categorias, dentre elas: luta, briga, ritual, celebração, festa e festival.

"Na Bolívia repete-se ano a ano o Tinku, festival de lutas pré-colombiano (...)"; "(...) festa ritual realizada principalmente no norte do departamento de Potosí (...)"; "Apesar de sua rotina de lutas sangrentas e mortes, persiste como a celebração anual mais aguardada da região."; "(...) a ponto de também ser conhecido como Festa da Cruz"; "(...) Outros ainda buscavam briga, mais em clima de bar do que de rito ancestral";

Quando procuramos características que possam categorizar o Tinku numa dada essência, válida para classificar todos os eventos culturais compreendidos até agora percebemos que não são suficientes. Isso porque nenhuma destas definições dá conta de ilustrar o que é o Tinku, somente o que ele deveria ou poderia ser.

Assim como a Fonte de Duchamp , que representou um rompimento do establishment artístico no início do século XX, o Tinku causa estranheza, porque não é uma luta, briga, ritual, celebração e festa. Pelo menos não é apenas isso. é por isso que os autores da reportagem por vezes combinam mais de uma dessas categorias. Além disso, digamos que os termos acima, são demasiadamente generalistas. Representam algumas daquelas categorias do pensamento estruturalista que são mais elásticas, ou seja, servem para definir muitas coisas, e assim, não conseguem explicar ou tornar fixo o significado daquilo que pretendem representar.

Metafísica (o Ser transcendente) do Tinku

Outra forma utilizada pelos elaboradores dos materiais jornalísticos a fim de definir o Tinku, demonstrar sua utilidade e explicar sua violência é a metafísica. O vocábulo advém do termo metà tà physiká, ou seja, "os que estão depois da física". Trata-se de uma forma de dizer sobre um dado pensamento/objeto ainda de forma ontológica, mas agora, a partir de algo que não está contido explicitamente no seu corpo.

Nessa tentativa de teorizar sobre coisas que estão além de qualquer experiência possível, comumente faz-se o uso do termo transcendente. De acordo com Williams (2012), um âmbito transcendente é algo externo, superior e independente. Ele estabelece valores superiores que podem ser aplicados a um âmbito inferior. É como um mundo diferente que nos dá direção, embora se mantendo independente (divino, por exemplo).

Deleuze (1976), no livro "Nietzsche e a filosofia", afirma que a metafísica formula a questão da essência da seguinte forma: Que é...? Ele atribui a Sócrates e a Platão os primeiros questionamentos sobre esse modo particular de pensar. Comum aos dois é a resposta por meio da citação de exemplos do que é: bonito, feio, etc.

A pergunta "O que?", segundo Nietzsche, significa o seguinte: considerando-se uma determinada coisa, quais são as forças que delas se apoderam, qual é a vontade que a possui? Quem se exprime, se manifesta, e mesmo se oculta nela? Só somos conduzidos à essência pela pergunta: "O que?" Pois a essência é somente o sentido e o valor da coisa. (DELEUZE, 1976, p.37)

Percebe-se na matéria jornalística que é partir de uma possível transcendência religiosa que muitos entrevistados buscam estabelecer a origem e a causalidade da violência do Tinku:

No primeiro domingo de maio, membros de cerca de 70 comunidades rurais lotaram as ruas de Macha para render homenagem a Jesus Cristo e a Pachamama (mãe-terra) dançar ao som do charango (instrumento de cordas) e da jula jula (flauta andina);

O sangue derramado e a morte são justificados como uma oferenda a Pachamama em troca de uma boa colheita;

[Cruz ] "Se há luta e sai sangue, é uma homenagem a Pachamama, para que tenha um bom ano na agricultura. Quando morre gente, é um bom ano, um ano produtivo. Quando não morre gente, a produção cai para o ano seguinte. Nestes dois últimos anos sem mortes, tivemos granizo e desastres naturais.";

[De Laurentiis ] Há uma atitude bem ambígua sobre a morte. Por um lado, a morte é voltar a nascer e entrar no circuito de reprodução da terra e do cosmo, afirma. Por outro lado, tentam também prevenir. Há três dias de rituais antes de participar do Tinku. Um deles se destina saber o que vai se passar no Tinku e criar uma relação com os antepassados para que se evite principalmente a morte.

O Tinku e a estilística do viver

Nietzsche, por meio de sua filosofia à marteladas ataca todos os sentidos e valores transcendentes. Esse autor propõe uma análise genealógica, porque tais artefatos culturais se desenvolvem a partir de lutas históricas, que continuam a se desenvolver, sempre enlaçadas e dependentes do jogo entre forças (ativas e reativas) e que por isso, não podem ser desconsideradas.

Deleuze (1976), se referindo à perspectiva genealógica de Nietzsche afirma que o objetivo não é postular uma verdade fixa e definitiva das coisas, ela se opõe ao caráter absoluto dos valores, tanto quanto a seu caráter relativo e utilitário. A verdade se torna então uma questão de perspectiva, ou de "perspectivismo"- as coisas são incessantes processos, como lutas entre diferentes vontades de poder, entre diferentes valores, diferentes modos de vida. Nenhuma essência, valor ou avaliação pode subsistir sem considerar o ponto de vista dessas lutas e desses modos de vida. Ao invés de algum Ser ontológico e transcendente, todas as coisas, primeiro são imanentes. A imanência é o meio sobre o qual todas as coisas ocorrem.

Contra as perspectivas totalizantes citadas acima, Deleuze afirma que é na imanência que os sujeitos dão sentido a sua existência. Diz também que não é pela essência que se encontra o importante, porque o importante é o que passa, trespassa, muda. A lógica da vida não é uma lógica do Ser estável, mas a lógica do devir, ou seja, do vir-a-ser, a lógica da imanência.

Nesse sentido, para expressarmos a vida e não aprisioná-la, seria necessário pensar as coisas pelo meio, pelo que "estão sendo", não pelo que "são". É pelo trânsito, pelo movimento de tornar-se algo, que não é exatamente o que o precede nem o que sucede, pois nesse meio, há transformação, fusão e a possibilidade do surgimento de algo novo.

Já Foucault ilustra as diferentes formas que puderam adquirir as artes da existência, pelo que chamou de modo de vida (bíos) se fazendo como "arte de viver", de "estilística da existência", ou "a vida como beleza possível". Também os relaciona com o que chama de história da subjetividade ou da metafísica da alma:

Mas gostaria de captar, gostaria de tentar mostrar a vocês e mostrar a mim mesmo como, pela emergência e pela fundação da parresía socrática, a existência (o bios) foi constituída no pensamento grego como um objeto estético, como um objeto de elaboração e de percepção estética: o bios como uma obra bela. Temos aí a abertura de um campo histórico de grande riqueza. Há que fazer, é claro, a história da metafísica da alma. Há que se fazer também a alternativa - uma história da estilística da existência, uma história da vida como beleza possível (FOUCAULT, 2011, p.144)

De tal modo, trata-se também de entender a vida para além das formas disciplinadas e ordenadas pela racionalidade lógica moderna. Nessa concepção, se valoriza uma forma de vida marcada pela autenticidade, pela recusa de uma postura única, humanista, progressista, pautada em apenas um ideal de justiça e felicidade. Seguem os raros trechos, nas falas dos entrevistados, que consideram o Tinku a partir dessa perspectiva:

[De Laurentiis] ritual "um idioma corporal para reafirmar seu pertencimento ao grupo", semelhante a eventos de tradição popular que acontecem na Europa, como entre grupos católicos espanhóis.

[Marvin Molina ] "A lei fica sem efeito um dia por ano" (...). A polícia não pode impedir o enfrentamento físico, apenas os excessos na realização da cultura originária. É um dos poucos lugares do mundo onde se vive o pluralismo jurídico.

[Cruz] "Se há luta e sai sangue, é uma homenagem a Pachamama, para que tenha um bom ano na agricultura".

Considerações provisórias

O que se percebe analisando os discursos dos entrevistados é uma multiplicidade de teses e opiniões sobre uma dada essência do Tinku, seja na busca de um Ser ontológico ou metafísico. Com exceção da fala de um participante, os demais discursos veiculados no material jornalístico procuram interditar o Tinku desconsiderando-o enquanto artefato cultural que compõe o modo de existir dessa cidade boliviana.

[Cruz] "Nós, como governo municipal, estamos evitando mortes. Já não deixamos que haja esse problema, porque não podemos fazer do ser humano um brinquedo. Por esse motivo, haverá uns 50 policiais para dar segurança à população".

Para alívio e preocupação do vereador-camponês Cruz, pelo terceiro ano consecutivo, nenhuma morte foi registrada.

Nota-se que ao falar sobre o Tinku, o material reúne e expressa julgamentos e avaliações, pressupondo uma realidade e uma verdade universal e binária, do "bem" contra o "mal". Faz isso naturalizando a violência e a morte de alguns participantes como algo terrível e abominável, que precisa ser evitado a qualquer custo.

É importante dizer que se trata de uma avaliação a partir do olhar de quem está "de fora", e do lado "de fora", não se notam os efeitos, não se percebe o movimento, os devires, o estilo e as formas de vida produzindo e sendo produzidas.

As avaliações, referidas a seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores em relação aos quais eles julgam. Por isso temos sempre as crenças, os sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou de nosso estilo de vida (DELEUZE, 1976, p. 5)

Podem acusar esse tipo de pensamento como relativista. Mas a enfática recusa de absolutos não impede uma posição política, pelo contrário, isso apenas propicia outras formas de se fazer a crítica. Poderíamos, por exemplo, inverter a lógica e avaliar os efeitos das próprias intervenções ao Tinku:

[Cruz] "Quando morre gente, é um bom ano, um ano produtivo. Quando não morre gente, a produção cai para o ano seguinte. Nestes dois últimos anos sem mortes, tivemos granizo e desastres naturais.

[De Laurentiis] "Por um lado, a morte é voltar a nascer e entrar no circuito de reprodução da terra e do cosmo", afirma.

Por fim, poderíamos também colocar as sociedades capitalistas contemporâneas, as mesmas que apoiam as intervenções ao Tinku, no banco dos réus. Questionando, por exemplo, o porquê de alguns artefatos culturais como: alpinismo, vôo livre, automobilismo, motociclismo, artes marciais em geral, futebol americano e rúgbi, que causam muitos óbitos anualmente, não serem interditados como o Tinku.


Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. 1∘ edição brasileira: tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

FOUCAULT, Michel. A Coragem da verdade: O governo de Si e dos Outros II. Curso no Collège de France (1983-1984). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.


"Os impasses em torno de um ritual boliviano de lutas" - 01/06/2014 - Ilustríssima - Folha de S.Paulo. Reportagem: Fabiano Maisonnave, fotografia: Rodrigo Machado e edição: Henrique Cartaxo. Disponível em Marcel Duchamp criou o que chamam "readymade", ou escultura pronta. Com sua obra Fonte (1917), produzida apenas com um mictório, redefiniu o que a arte era e podia ser. José Luiz Cruz, ex-participante do Tinku, agricultor e atualmente vereador da cidade de Macha. De Laurentiis, antropólogo e estudioso do Tinku. Marvin Molina, diretor de assuntos jurídicos do Ministério de Culturas e Turismo da Bolívia.