Natalia Pineiro Bressan Dutra

Processo criativo: Diálogos entre a prática de sala de aula e a produção artística

"Não será a realidade apenas a dor, talvez, e não terá a representação nascido daí?"1

Começo com essa reflexão recortada da obra de Nietzsche para trazer a dimensão da escuridão que se mergulha quando nos encontramos em um lugar de busca, de verdades suspensas, de queda sem fim previsto, de tomada de consciência de nossas limitações e fragilidades.

É verdade que todos passamos por dores imensas e constantes por todo o percurso da vida, e talvez sejam elas quem nos dê a dimensão das qualidades e felicidades da vida. Segundo Nietzsche, a criação do artista se dá pela dor, a tragédia carrega consigo o nascimento da dor primordial, da dor primeira e que é renascida a cada nova criação artística. Como nos conta no trecho abaixo:

"não apenas sofre, mas gera: gera a aparência a cada instante, por menor que seja. (...) A prodigiosa capacidade artística do mundo tem seu análogo na prodigiosa dor originária"2

O artista é por excelência o ser que sofre com o mundo, que manifesta através de sua arte os sintomas presentes, mas subterrâneos, e comuns a todos de seu tempo. Faz sobreviver através dos tempos o que é comum, o sofrimento, a sensibilidade, a paixão atemporal e ao mesmo tempo específica de um determinado momento.

É a partir de sua sensibilidade e necessidade de expressão que tomamos consciência de nossas origens ancestrais, de diálogos possíveis a partir de diferentes obras de arte, em diferentes contextos. As imagens sobrevivem, assim como os pensamentos e sentimentos que as compõem e se atualizam naquele que as frui. Uma obra de arte só ganha movimento se alguém se deixa atravessar por ela, se se deixa transformar por ela.

O sofrimento não é o fim para o qual se são produzidas as tragédias, nem a única fonte de criação, mas sim um possível alimento, uma potência de engrenagem que dispara um dispositivo produtivo. A sensibilidade do artista diante das experiências vividas o impulsiona à criação. Porém, a dor não encarada dessa maneira nos coloca inertes e apáticos. Por isso, o sofrimento pode despertar o ser dos sentidos, assim como a extrema alegria também pode, dependendo da maneira como a encaramos, como nos esclarece Schiller, o páthos, a paixão, o sentimento, traz força para que a razão possa manifestar-se como atuante diante da realidade posta.3

A realidade sendo dor incômoda, afeta e nos impulsiona a cultivar espaços de transformação dessa realidade. A consciência da morte e as tentativas de sobrevivências originam a produção artística, e essa é a forma mais primitiva da vontade de poder.

(...) a vontade de poder manifesta-se como a capacidade de ser afetado, capacidade determinada pela força, por ela mesma ser afetada. (...) A capacidade de ser afetado não significa necessariamente passividade, mas afetividade, sensibilidade, sensação (...). é por isso que Nietzsche não para de dizer que a vontade de poder é "a forma afetiva primitiva", aquela de que derivam todos os outros sentimentos. Ou, melhor ainda: "A vontade de poder não é um ser nem um devir, é um páthos." (...) O páthos é o fato mais elementar do qual resulta um devir.4

Fico imaginando nossa realidade contemporânea anestesiada, em que se bloqueiam os canais de sensibilidade, em que as práticas automatizadas se sobrepõem às vivências mais significativas, observadoras e transformadoras, como será possível criar novas possibilidades de estar no mundo se não nos permitimos a vivenciar essa dor da insatisfação com a realidade? Como alimentar uma prática artística sem colocar em jogo nossa própria existência, nosso envolvimento com a vida em todos os âmbitos, práticos e teóricos?

É preciso correr riscos, é preciso se permitir correr riscos, se deixar afetar e produzir devires a partir disso, como nos orienta Deleuze. A paixão sendo a forma mais primitiva de afeto me leva a um inconformismo da realidade na qual estou inserida e me dá liberdade para mapear ações e possibilidades antes não levantadas, debaixo de uma camada de conformismo.

Ter como parâmetro a postura do artista para a prática da vida, para a vivência em todos os sentidos, é se colocar a possibilidade de correr riscos, de ser afetado e de ter a sorte de viver uma experiência, de ser transformado e experimentar o por vir, o incerto.

(...) a massa dos sentimentos que acompanham todas as manifestações de nossa vida normal, mas que, no estado normal, são sufocados por nossa atividade intelectual e volitiva, liberta-se no estado estético e nele se manifesta em toda sua riqueza infinita, pois, durante a contemplação, escapa igualmente bem da prisão sombria e desolada dos conceitos e do torno do imperativo categórico.5

Basch, assim como Dewey, Larrosa e tantos outros nos alertam sobre a importância da experiência e da necessidade de nos presentificarmos em todas as nossas ações. De darmos vasão para a 'massa de sentimentos' que costumamos sufocar nas tarefas diárias e rotineiras.

Todos somos carregados de informações e opiniões e, por isso, não nos deixamos mais abertos ao impensável, às descobertas, às invenções. Estamos engrenados em uma máquina bem coordenada e funcional, mas a qualidade das vivências tem se perdido exponencialmente.

Com referência à postura do artista, considerando essa figura como a de um sujeito que se propõe, que se permite, que se afeta, que se exprime, e que a partir desse processo se transforma, busco um paralelo para a formulação da estrutura necessária para compor a postura do professor reflexivo. Que representa esse sujeito que carrega essas qualidades de artista dentro de sua prática, que pensa a partir de suas ações, antes, durante e depois. Que mobiliza mudanças a partir da confrontação de realidades e que se inspira nesse diálogo entre teoria e prática para provocar essa transformação.

O conceito de professor como prático reflexivo reconhece a riqueza da experiência que reside na prática dos bons professores. Na perspectiva de cada professor, significa que o processo de compreensão e melhoria do seu ensino deve começar pela reflexão sobre sua própria experiência e que o tipo de saber inteiramente tirado da experiência dos outros (mesmo de outros professores) é, no melhor dos casos, pobre e, no pior, uma ilusão.6

O olhar atento, a presença, a disposição e a pesquisa por interlocutores são requisitos fundamentais para esse profissional que se responsabiliza por suas próprias ações, que têm um profundo respeito em relação a todos os envolvidos e a responsabilidade sobre as consequências nas vidas durante o processo de ensino-aprendizagem compartilhado.

E é nesse diálogo, entre planejamento, objetivos, realidade prática e qualidade das relações, que se estabelece um processo criativo rico em que se atravessam inúmeros interesses e se delineiam caminhos a serem seguidos, mas que não impedem a formação de novos caminhos diante do percurso desencadeado.

O currículo constitui uma especificação que resulta hipotética, aberta a interrogações e a comprovações dentro da qual se constrói e gestiona o conhecimento.7

Stenhouse nos orienta nesse sentido, colocando de maneira muito séria e respeitosa essa liberdade de ação dentro do currículo. Nesse caminho, o currículo não tem como delinear como será o seu percurso e desde seu início saber qual será o seu fim de maneira explícita. Ele, por sua natureza, é mutável e permeável, permitindo a inserção dos sujeitos, do acaso e das mudanças de rota dentro de sua construção.

Ele se alimenta disso e se torna vivo através da prática consciente. Ganha sentido para o professor que se inspira em sua própria prática e para o aluno que se coloca de maneira ativa para se relacionar com o inesperado, com a surpresa.

A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.8

Por experiência própria concluo que o que geralmente paralisa o professor é um acúmulo de horários e tarefas que o levam a uma postura de controle da situação, para garantir que tudo saia como o esperado, com certa estabilidade, com objetivos palpáveis e previsíveis, para que o desgaste de sua rotina não seja ainda maior do que naturalmente é.

Porém, esse é um lugar perigoso porque deixa muito longe a perspectiva do aprendizado pelo encantamento, da aproximação pelo afeto, do estabelecimento de vínculo com os sujeitos envolvidos, que agregam interesse real aos conteúdos a serem aprendidos e que, no final das contas, vira uma armadilha para o próprio professor.

Essa foi uma importante lição que aprendi durante esse ano. Deixar um pouco de lado as sistematizações que buscamos para facilitar a prática, e que têm o seu lugar de importância, para dar mais vazão ao processo criativo disparado pelos encontros em sala de aula.

Voltando à Nietzsche e à origem da obra de arte, penso que foi possível juntar as pontas de angústias que julgava mais distantes. A prática artística e a prática docente.

A consideração da aula como obra de arte já era tema comum a mim, porém com outro sentido: a aula como obra de arte era pensada como esse momento de experiências únicas e com esse potencial da criação artística.

Porém, a origem da obra de arte como a manifestação da dor primeira traz consigo uma potência agregadora de sentido, por transformar a realidade vivida, por reverter um estado de coisas, e até o momento não havia conseguido trazer esse sentimento de criação a partir do sofrimento, do pathos, como uma forma de sublimação, para a sala de aula.

Vivenciei momentos de abismos durante as aulas de duas turmas na escola em que leciono e foi a partir de situações tão inférteis e tristes que foi possível despertar para uma nova forma de criação. Para um novo diálogo comigo mesma a partir da prática e das reflexões já disparadas no encontro com interlocutores importantes.

Foi um dia fatídico e que manifestou essa potência do páthos necessária à criação do artista trágico. Diante da inércia e desinteresse apresentados por parte dos alunos, e que também consigo considerar que eram os reflexos da minha própria inércia e desinteresse, iniciei uma conversa que me levou a uma abertura jamais pensada por mim em uma sala de aula.

As lágrimas foram inevitáveis e me expus de um jeito aberto e sincero para crianças pequenas, que talvez nunca fossem imaginar a dimensão do sofrimento que eu estava sentindo, diante de produções de imagens muito boas, mas completamente desprovidas de interesse e sentido.

Até esse ponto as respostas estavam suspensas. O inesperado se abriu como nunca e o que era de comum acordo já não funcionava mais. Era necessário tentar de outro jeito, se a intenção fosse reverter aquela situação. Porque de nada valeria continuar com resultados plásticos agradáveis, mas com distâncias afetivas abismais.

Buscando na memória pontos de cumplicidade, me vieram os momentos em que eu mostrava meu caderno de estudos visuais a eles. Começou como algo pequeno e não programado, me colocando também como uma estudante, como uma pessoa que mantém uma pesquisa visual, que se preocupa com seu processo de desenvolvimento artístico.

O que de início era um detalhe, foi ganhando mais espaço e nesse ponto diagnostiquei que era o único momento em que eles realmente mantinham o olhar vivo, atento. Só quando eu compartilhava meu trabalho, me colocava no papel de artista, com uma produção própria, e no papel de estudante, no sentido de uma pesquisa incessante pelo conhecimento da prática artística, é que eles se sentiam estimulados a participar.

A partir disso pensei na potência do caderno de artista como um registro de uma sequência que ganha sentido pela soma das etapas envolvidas no percurso.

O que me incomodava, na relação com os alunos, é que cada desenho perdia a importância no minuto posterior à entrega para cumprir a tarefa do dia. Eu queria que eles conseguissem traçar um caminho, reconhecer uma vontade de pesquisa. Algo que se construísse e que se somasse em um todo maior, e, nesse momento, o caderno trazia essa potencialidade.

"Se queres saber diretamente uma certa coisa ou uma determinada classe de coisas, deves participar pessoalmente na luta prática para mudar a realidade, (...) só através da participação pessoal da luta prática para mudar a realidade poderás descobrir a essência de tal coisa ou classe de coisas e a compreenderás".9

O que imagino que Mao Tse Tung trazido à reflexão por Stenhouse nos leve a pensar é que a sabedoria construída no tempo a partir da prática se dá no conhecer profundamente o ambiente em que se vive para compreender o que ele precisa para mudar e para melhorar a qualidade das relações estabelecidas entre aqueles que dividem esse ambiente.

A partir dessa consciência estava posta a necessidade de mudança de realidade, da busca por novos sentidos a partir da prática. Construiríamos cadernos de artistas e, na minha intenção, as crianças passariam a ser sujeitos de suas próprias pesquisas.

Preparei todo o material necessário para a construção de cadernos costurados de capa dura e os recebi no encontro seguinte com essa ideia de caderno de artista a partir da minha própria experiência, que eles já estavam familiarizados.

O entusiasmo os contagiou imediatamente.

Organizamos a maneira de pegar os materiais; os procedimentos de confecção das etapas de dobrar as folhas, costurar, encapar, colar e decorar. Foram necessárias duas aulas duplas para a montagem de todas as etapas, além de muita paciência por parte deles e por minha parte. Não foi nada fácil, os procedimentos de confecção de cadernos são complexos e exigem um cuidado muito grande, mas isso não nos intimidou.

As crianças ficaram muito ansiosas para levarem seus cadernos para casa logo na primeira aula, mas como poucas crianças estavam com seus cadernos prontos, achei melhor esperarmos até que todas pudessem ter o mesmo prazer de levar seu caderno de artista para casa e iniciar suas pesquisas visuais.

Eu estava com uma expectativa muito grande diante desses cadernos, mas não poderia prever seus resultados. As crianças se apropriaram de seus cadernos de maneira extremamente forte, séria e comprometida. A cada semana traziam seus cadernos com novas experiências de desenho, com novas soluções e pesquisas.

Houve quem estudasse os personagens de que mais gostavam; quem realizasse estudos de diversos tipos de bocas, olhos, narizes, orelhas...; quem testasse formas de representar o movimento; e também quem fizesse desenhos de observação; tinha de tudo, mas o que era mais importante naquele momento era que eu via de novo nos olhos dos alunos o entusiasmo necessário para transformar nossa relação e a relação entre eles e o conhecimento em diálogo ali: as artes visuais.

A partir desse momento, desse retorno com os cadernos, tínhamos o espaço da aula reservado para a troca e compartilhamento das produções realizadas em casa e a partir delas eu disparava desafios e conteúdos que poderiam dialogar com as produções realizadas.

Desenvolvi um sistema de pontuação para que os impulsionasse a usar e trazer os cadernos, mas o próprio momento de trocas de desenho já garantia esse papel, foi mais uma forma de poder me vincular a algum tipo de método de avaliação do que para estimular as crianças.

Em outros momentos, durante percursos realizados pelos corredores da escola, as crianças me paravam para mostrar como estavam indo seus desenhos. E passaram a trazer não só os cadernos, mas também outras folhas e livros de desenho que haviam se aproximado para melhorarem suas práticas.

Daquelas aulas colhi algumas falas das crianças em nossas conversas, mas durante o processo todo foi impossível registrar melhor o que vivemos, por estar envolvida demais no momento presente da aula:

"Não é mais por obrigação, é com mais vontade"

"Fiquei com mais ideias"

"Muito difícil porque tem que cuidar bem, é uma coisa que é pra gente"

"Fiquei tão ansiosa que eu quis desenhar logo no primeiro dia"

"(Temos) Quase todo dia para desenhar"

"O Henrique não sabia desenhar"

"Transformei o erro em acerto"

"A gente gostou muito de fazer o caderno"

"Agora que o Henrique gosta de desenhar. Ele pegou cadernos com (imagens de) animais, na internet, de carros, instrumentos, para desenhar"

São falas simples, mas que me comovem porque entendo o sentido transformador que representou esse processo, não só para eles como para mim, enquanto professora e artista, porque também me levou a acionar um processo criativo meu, individual, mas que estava em paralelo, em diálogo com essa noção de artista que eles entenderam ao fazer o caderno.

Porque o fato de eles terem confeccionado seus próprios cadernos trouxe um peso muito maior para essa experiência. Não eram cadernos substituíveis, eram feitos por eles, por cada um e assumido como algo importante não para a aula de artes apenas, mas também para eles, em relação a essa postura de investigação e pesquisa que pode se expandir para todos os âmbitos.

Essa foi uma resposta que encontrei para aquele determinado momento, com aquelas determinadas turmas, com aqueles problemas levantados. Não sei como seria em outras circunstâncias, em outros contextos, e acho que é isso que é bonito quando você se permite a um processo de construção criativa de sua própria prática. Quando as respostas ficam suspensas e o indeterminado se impõe você inicia uma nova jornada para encontrar novas respostas.

Essas zonas indeterminadas da prática - a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores - escapam aos cânones da racionalidade técnica. Quando uma situação problemática é incerta, a solução técnica de problemas depende da construção anterior de um problema bem delineado, o que não é, em si, uma tarefa técnica. Quando um profissional reconhece uma situação como única não pode lidar com ela apenas aplicando técnicas derivadas de sua bagagem de conhecimento profissional. E, em situações de conflitos e valores, não há fins que sejam consistentes em si que possam guiar a seleção técnica de meios.10

Schn nos alerta nesse sentido, colocando a noção de que temos sim ferramentas e algumas questões práticas que nos auxiliam na solução de problemas, mas que mesmo assim, não escapamos dessas situações imprevistas, impensáveis e que precisamos utilizar de nosso repertório com sabedoria para criar algo que corresponda às necessidades de uma determinada situação.

O nascimento de cada obra de arte emana autenticidade porque é necessário que o artista recrie soluções para os problemas que se apresentam para ele no diálogo entre a aplicação de técnicas e necessidades de expressão.

é esse o conhecimento que o mestre artesão passa para seus aprendizes, para além da técnica e das questões práticas específicas de sua área. Ele arquiteta experimentos, verificações e renova sua prática a partir da análise sábia de suas consequências.

Seja na educação escolar ou na formação profissional, a prática só gera conhecimentos quando ocorre reflexão sobre ela, como se verifica na práxis artística criadora, em que a consciência que concebe e a mão que realiza o concebido transformando a matéria não se separam. Os objetivos artísticos resultantes da integração entre o pensamento e a ação são objetos humanizados, revelam e exprimem os seres humanos que os produziram. O mesmo ocorre quando a docência é exercida de forma criadora.11

Assim como conclui Sumaya Mattar, produzimos conhecimento com nossa prática. Somos capazes de gerar conhecimento, mas só se nos identificamos com essa postura reflexiva. Só se nos colocamos de maneira ativa antes, durante e na ação.

é esse processo reflexivo que se configura como criador, genuíno e autoral e foi essa postura do aprendizado artesanal, do aprendizado pela proximidade, pela afetividade que me impulsionou a mudar de rota, sem que eu perdesse os alicerces que me sustentavam, mas trazendo o interesse dos alunos de volta a partir da própria práxis do trabalho artístico e da relação investigativa que o sujeito estabelecesse pessoalmente com esse trabalho.

A mais linda borboleta que já aprisionei rompe bruscamente o vidro e vem dançar no azul...12

De um buraco na parede tudo se revelou. O ambiente do ateliê tem um aspecto rústico, convidativo, mas que as crianças também conseguem identificar como algo parecido com ruínas. A parede é toda de tijolo aparente que carrega a marca do tempo, apresentando buracos que viram pontos de investigação de mistérios. O chão igualmente presente tem madeiras robustas, mas que também revelam buracos em que as crianças espiam o andar de baixo.

Conduzida pelo poder de imaginação e investigação que significou esse processo vivenciado com as crianças do 4 ano, mas tendo referência, tanto visuais como atitudinais, também de outras turmas que serviram como inspiração para meu trabalho, desenvolvi uma história em quadrinhos que se revela simbolicamente o momento que me encontrei principalmente durante esse último semestre.

Na história, o ambiente da sala de aula inicia-se com seu tom congelado, como esse lugar onde é preciso estar, mas que não se tem muito prazer nem espaço para possibilidades outras. Muitas crianças estão presentes desenhando de maneira desinteressada, quando um deles, o personagem que desencadeia a história, realiza um desenho de uma borboleta e esta ganha vida.

A borboleta veio como a metáfora de Aby Warburg sobre a atitude do pesquisador de caçar a borboleta incansavelmente, ora conseguindo agarrá-la na rede ora deixando-a escapar; mais ainda como uma metáfora da busca pelo conhecimento.

Essa borboleta instiga o menino a segui-la e o conduz para dentro de um desses buracos, que, após um percurso, se revela um portal para um mundo onde as coisas se apresentam empiricamente e o conhecimento pode ser estabelecido a partir do contato direto entre elas e quem estabelece contato.

O menino se encanta com toda aquela descoberta e, após percorrer alguns importantes representantes de nossa cultura, volta para dividir com seus colegas e convidá-los a se arriscarem também nessa aventura para o conhecimento.

Os colegas aceitam o convite e, logo atrás, a professora também o segue, encantada com o caminho que os alunos a estão guiando.

Nesse final, busquei trazer essa relação de parceria que pode ser estabelecida pelo professor com seus alunos, dando vazão aos anseios das crianças e buscando com isso agregar os saberes aos interesses de seus alunos.

Em um pensamento de Vischer trazido por Didi Huberman é sintetizado de forma clara e sábia o espírito do que busquei nessa ação, transformando toda a dor em força criativa, tanto para meu processo artístico pedagógico quanto para o processo vivenciado pelas crianças.

Esse reconhecimento de uma 'onissensorialidade' da experiência - na qual o ver vira olhar, o olhar vira sentir, o sentir vira mover-se e o mover-se vira comover-se.13

O espaço das relações e da convivência foi amplificado nesse processo para potencializar o aprendizado do conteúdo proposto. Percebi que era no sentido das relações, e não no conteúdo em si, que era possível despertar um maior interesse para a aprendizagem pelos alunos.

Pensando nisso, fica muito evidente a lucidez da formulação de Warburg sobre a relação que buscava entre as imagens. Em seu atlas Mnemosine construía pranchas de relações entre imagens que manifestavam os mesmos gestos, as mesmas sobrevivências manifestadas por artistas em diferentes épocas da humanidade.

Durante muito tempo se debruçou nessas relações, mas em determinado momento percebeu que, na verdade, ainda mais importante do que as imagens em si, eram os espaços pretos que as envolviam, pois eles representavam esse espaço potencial das relações, revelando que as imagens em si mesmas não nos dão sentido, mas os sentidos se constroem nas relações que os sujeitos estabelecem com elas.

Acho que esse pensamento exemplifica de maneira majestosa o cuidado que devemos ter com as relações. Porque são elas que nos fazem buscar sentidos entre as coisas presentes no mundo.

Somos seres que precisamos agregar sentido a tudo o que fazemos. Construímos sentidos, mesmo a partir de informações desconexas. Esse instinto criador de sentidos faz com que disparemos algumas buscas que sustentam nossas ações.

Marie Cristine Josso defende que as buscas subjetivas movem a todos e que os pilares dessas buscas são a busca de sentido, a busca de felicidade, a busca de conhecimento e a busca de si e de nós. E que todas essas buscas estão caminhando no sentido de alcançarmos a sabedoria.

E que para que tudo isso possa acontecer precisamos estar absolutamente conectados com o que somos, com nossa subjetividade para conseguir estabelecer relações saudáveis com os outros. Nada que fazemos se interrompe no individual. Tudo tem relação com o coletivo.

E no trabalho docente isso fica mais nítido ainda. O coletivo tem o potencial de conduzir buscar se nos deixamos afetar por ele. As individualidades e subjetividades de cada ser inserido na situação agrega para a construção desse coletivo. E para que essa abundância de subjetividades não ocupe espaços a mais, espaços reservados ao outro, espaços de vazios a serem preenchidos na ação com o outro, é preciso cultivar relações de convivência saudáveis, respeitosas e afetivas para que o conhecimento se construa junto a partir daí.

E diante da surpresa encontrada no fim do percurso só posso reafirmar positivamente esse processo de aproximação afetiva para construção do conhecimento. No último dia de aula, o aluno que inspirou a criação do personagem principal da história em quadrinhos desenhou uma borboleta, símbolo elegido por mim para a representação da busca pelo conhecimento.

Nisso fica clara a potência das relações implicadas e o quanto as ações reverberam de maneiras inesperadas e amplificadas. Foi necessária muita sensibilidade do aluno em manifestar de forma tão explicita o quanto estávamos conectados nesse percurso.

Esse reflexo fica um pouco no plano do inexplicável, da surpresa, do mistério que envolve as relações humanas e a produção artística expressiva que desencadeiam novos processos criativos despertados pelas delícias dos encontros entre a vida e a arte.

História em quadrinhos - Formulação visual do processo vivenciado

A mais linda borboleta que já aprisionei rompe bruscamente o vidro e vem dançar no azul...

Aby Warburg

Fotos do processo:

Apreciação dos alunos a partir do caderno de desenho da professora

Processo de confecção dos cadernos de artistas

Cadernos prontos e produções das crianças

Das surpresas do encontro poético

Desenho de borboleta inesperadamente realizado no último dia de aula pelo menino inspirador do personagem principal da história em quadrinhos

Da importância das relações


Aby Warburg - Atlas Mnemosyne

NOTAS:

1. F. NIETZSCHE, 1869-1872, p. 281 (fragmento VII, 116). In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 129.

2. F. NIETZSCHE, 1869-1872, P.312-313 (FRAGMENTO vii, 168-169). In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 129.

3. F. SCHILLER, 1792b, p. 151. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 180

4. G.DELEUZE, 1962, p. 70-72. Cf. M. Djuric, 1989, p. 221-241. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 183.

5. V. BASCH, 1921, p. 62 e 65. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 349.

6. ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa, 1993 - p. 17.

7. STENHOUSE, L. La investigación como base de la enseñanza. Madrid: Ediciones Morata, 1998 - p. 93.

8. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 - p. 16.

9. Mao Tse Tung STENHOUSE, L. La investigación como base de la enseñanza. Madrid: Ediciones Morata, 1998 - pg. 139.

10. SCHÖN, Donald A. Educando o Profissional Reflexivo. Porto Alegre: Artmed, 2000 - p. 17.

11. MATTAR, Sumaya. Sobre arte e educação - Entre a oficina artesanal e a sala de aula. Campinas, SP: Papirus, 2010.

12. A. WARBURG, 1900 (citado por E. H. GOMBRICH, 1970, P.107). In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 297.

13. DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 - p. 351 sobre R. VISCHER, 1873.


BIBLIOGRAFIA:

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas Segundo Aby Warburg; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

JOSSO, M-Christine. Experiências de vida e formação. Prefácio de António Nóvoa, tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira. Lisboa: Editora Educa-Formação/Universidade de Lisboa, 2002.

MATTAR, Sumaya. Sobre arte e educação - Entre a oficina artesanal e a sala de aula. Campinas, SP: Papirus, 2010.

SCHÖN, Donald A. Educando o Profissional Reflexivo. Porto Alegre: Artmed, 2000.

STENHOUSE, L. La investigación como base de la enseñanza. Madrid: Ediciones Morata, 1998.

ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa, 1993.