Helena Verderamis Sellani

Memória, narrativas e formação

Em seu livro O tempo vivo da memória, Ecléa Bosi, ao apresentar os conceitos de História Oral e Histórias de Vida, pergunta: "o movimento de recuperação da memória nas ciências humanas será moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a necessidade de enraizamento?". Para responder em seguida: "do vínculo com o passado se extrai a força para formação de identidade."

Esta necessidade de enraizamento, postulada por Simone Weil, pode ser sentida hoje, como nunca.

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. (WEIL, in BOSI p. 175, 2003).

Vivemos, trabalhamos, caminhamos pelas ruas, dispendemos horas vazias de sentido em filas, dentro de nossos carros ou transporte pú blico, cercados de iguais, mas quase intocáveis iguais, que compartilham de nossa solidão coletiva. O tempo não é mais aquilo que nos possibilita viver nossos sonhos e desejos. Deixou de ser parte para tornar‐se objeto de consumo, fim em si mesmo. Os sabores, os sons, as sensações são vividas com pressa. A mais simples possibilidade de observação da realidade converte‐se em perda de tempo: este precioso! As relações fluidas e descontinuadas não permitem ao homem o enraizamento, o desenvolvimento do sentimento de pertença.

Hoje, esta falta grita dentro de nós e uma possibilidade de sentir‐se mais inteiro, existindo, reside na possibilidade de rememorar. De narrar‐se, de atribuir‐se sentido dentro de um espectro de vida, que mais se assemelha a um turbilhão, mas que, pouco a pouco se desacelera para dar passagem à memória, que dá concretude e sentido ao vivido.

Nós só podemos ver as coisas com clareza e nitidez porque temos um passado. E o passado se coloca para ajudar a ver e compreender o momento que estamos vivendo. (CAMARGO, p. 33, 2009)

No entanto, este rememorar não é simples retomada do fato, é trabalho, segundo Bosi:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (BOSI, p. 55, 1994)

Depois de um mergulho, voltamos diferentes. Nos percebemos, ao mesmo tempo como espectadores e atores de um ato, às vezes coletivo, às vezes individual. Esta possibilidade de atribuir sentido ao vivido nos torna humanos. A memória é, pois, um instrumento valioso, que nos presenteia com a possibilidade da ressignificação do vivido e da formação identitária, através do trabalho de rememorar.

Como uma fiandeira, puxamos um fio, depois outro e mais outro para ir compondo a trama de fatos e lembranças reais ou inventadas (e nem por isso menos reais!), postas, dispostas no tear da narrativa. É nele que as cores e formas dos fios, antes isolados e soltos, tomam forma e beleza ‐ mesmo quando esta é uma beleza trágica. É neste tear que vamos reconhecendo nossa identidade e nossa história, à medida que tomam forma diante de nossos olhos. Creio que este tear é a escrita! A narrativa se materializando para significar!

Somos o relato que nós contamos e que nos contam, um relato inacabado, que não se pode terminar. Somos o relato que só finaliza com a morte. [...] Porém, enquanto isso, vivemos brincando, narrando. (MÈLICH, in SOLIGO. p. 54, 2007).

Somos o relato, inacabado e inacabável, que escrevemos durante nossa vida, durante nossa jornada de educadores. O professor que se assume autor de sua própria narrativa não corre o risco de ser contado de modo pouco fidedigno ao que se é. Quem se assume através da escrita, como afirma Bakthin, define‐se em relação ao outro, de modo muito mais autônomo, consciente e livre. A escrita pode libertar quem escreve de suas próprias prisões, amarras e algemas a partir da possibilidade de conferir‐lhes outros contornos. Além disso, narrar‐se dá a oportunidade de sentir‐se pertencente à uma realidade, grupo, situação, à própria vida. Iberê Camargo narrava‐se através de suas pinturas e gravuras, mas não furtou‐se a escrever suas memórias. Sentia que "as coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar". E dizia que:

Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo ‐ o existir. É difícil, se não impossível, precisar quando as coisas começam dentro de nós. (CAMARGO, p. 30, 2009)

E como nós, professores podemos "estar no mundo", como "existir", como construir nossa própria identidade?

Sem dúvida, através de nossa luta diária, de nossa prática, mas também, e sobretudo, através da história que contamos dela!

"Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, Eles lá terão sua beleza, se forem belos. Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir, Porque as raízes podem estar debaixo da terra Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir." Alberto Caeiro


Referências

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade ‐ Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

__________ O Tempo vivo da Memória ‐ Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CAMARGO, Iberê. Gaveta dos Guardados. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

DO VAL T. P., Guilherme. SOLIGO, Rosaura (orgs.). Porque escrever é fazer história: revelações, subversões e superações. Campinas: Editora Alínea, 2007.

PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.