Gabriela Vasconcelos Abdalla e Vivian Devidé Castro

A música transpondo fronteiras da Cultura Infantil

"O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções."
Laraia

Sabemos que o homem tem uma necessidade de expressar-se, que não faz parte de uma época, modismo ou até mesmo classe social, mas sim, que é inerente à humanidade desde seus primórdios, em todas as culturas até os dias atuais, como aponta Kater, em Música na Escola (2012).

Os diversos povos, de diferentes partes do mundo, possuem suas canções, danças, histórias, esculturas, vestimentas, brincadeiras, que compõem um universo cultural repleto de costumes diversificados que estão diretamente ligados às funções sociais.

Assim, podemos observar que as variadas linguagens artísticas são formas de expressão humana - tanto do indivíduo quanto do seu grupo social. Quando ouvimos música, pintamos, desenhamos, representamos, estamos interagindo com essa cultura, ampliando a percepção de nós mesmos e do mundo, bem como as possibilidades de expressão.

É neste contexto sociocultural que encontra-se o universo infantil. A cultura brincada, dançada, cantada, vivenciada pelos adultos é estendida ao mundo infantil. Podemos considerar a comunidade adulta como o cosmos no qual a criança está inserida. Ao interagir com esse universo a criança e os adultos ao seu redor inventam o microcosmos de sua cultura. As crianças podem interagir sobre as características de sua própria cultura, sejam elas da cultura latino-americana, europeia, africana ou asiática, através do brincar frente ao seu próprio universo.

Sabemos que o Brasil é um país de grande diversidade e complexa heterogeneidade cultural que permeia, inclusive, a cultura infantil em ambiente escolar. Neste contexto é importante trazermos o muticulturalismo para dentro das escolas, desenvolvendo projetos relacionados ao microcosmos de diferentes regiões do Brasil e do mundo, pois temos várias raízes culturais fundantes. A africana, por exemplo, nos influenciou com diferentes elementos que fazem parte do cotidiano infantil, como o Samba de roda, Coco de roda ou o Jongo.

Nesse sentido, uma profícua parceria entre diversas áreas da escola pode integrar as diversas linguagens artísticas e disciplinas, visando à construção de um repertório mais consistente sobre a cultura brasileira e suas influências.

Nesse contexto, no ensino da música, torna-se relevante a busca por elementos semelhantes/coincidentes entre a cultura infantil brasileira e a de outros países que carregam a matriz africana. Quais semelhanças poderiam existir entre as brincadeiras e canções de nossas crianças com as africanas? É possível encontrar uma quantidade de canções de roda, de brincadeiras de mão, fórmulas de escolha, jogos rítmicos com palavras e trava-línguas que confluem movimentos corporais como amarelinha, corda e elástico, desenhos melódicos, jogos de passar objetos entre outros tantos. Dos pontos em comum entre as culturas é possível traçar ricos paralelos. Para as crianças, saber que diferentes etnias gostam de brincar de atividades semelhantes pode ser um excelente caminho para romper fronteiras e estimular o respeito entre os povos. Além de reforçar a aprendizagem de diferentes elementos musicais, artísticos e culturais.

Para o professor, algumas perguntas se tornam relevantes: como se dá esta influência na música brasileira? Que funções têm a música no contexto cultural africano em comparação ao contexto cultural brasileiro? Quais são as características de utilização de instrumentos de determinado povo? Que características musicais possui determinada música? Em que contexto esta música está presente em nossa comunidade?

A partir destes questionamentos é possível criar condições didáticas para estimular o entendimento e a prática da música africana, criando interessantes relações com a música brasileira, desconstruindo assim, impressões pré-concebidas promovendo uma formação livre de preconceitos.

Nas escolas, é comum que o repertório musical esteja baseado em um tipo de fazer musical de importância secundária em comparação aos microcosmos mencionados anteriormente. Podemos citar dentre esses gêneros presentes no contexto escolar e, portanto, compondo supostamente o universo infantil, duas situações muito comuns:

1) a cultura dos adultos – oriunda de diferentes gêneros de música popular (pop, rock, MPB etc.) das mais diferentes épocas e lugares, normalmente advindas do Brasil, dos Estados Unidos ou da Europa.

2) o mercado televisivo ou cinematográfico – trilha sonora de novelas, filmes ou programas de auditórios destinados ao público infantil.

Esse repertório é apresentado como música infantil, porém é composto de acordo com as mesmas regras da primeira categoria, visando a venda dos produtos, não sendo concebidos como material de apoio ao professor de música em sala de aula.

Isto porque tal repertório é caracterizado por um trabalho com melodias de tessitura vocal diferente ao da criança (a uma ou mais vozes), tocados por uma banda cuja execução torna-se impossível de ser realizada pelos alunos, com quadratura característica e organizadas dentro de um contexto harmônico prioritariamente tonal com diferentes graus de complexidade.

Se considerarmos sua utilização de forma moderada durante o calendário escolar, isso não apresentaria uma influência tão negativa à experiência das crianças, mas se o professor de Música tem como alicerce tal repertório em seu planejamento, a criança começará a se distanciar do fazer musical, do jogo e da brincadeira característica do seu microcosmos. Com isso corre-se o risco de que sua vivência musical seja prejudicada em elementos importantes como afinação, ritmo, forma e técnica instrumental.

Jogos e brincadeiras típicos da cultura infantil africana contemplam diferentes necessidades vocais, corporais e cognitivas das crianças, assim como o repertório de nossa própria cultura infantil. Os alunos conseguirão afinar, sincronizar-se ritmicamente, harmonizar, tocar os instrumentos e, principalmente, criar laços afetivos com o fazer musical.

Esse repertório, como apontamos anteriormente, deve ser preferencialmente cantado, brincado, atuado, dançado e tocado de maneira ativa, pois um rígido apoio sobre gravações pode levar à eliminação das possibilidades do fazer “ao vivo”, prejudicando o hábito do fazer e produzindo, até mesmo, um enfraquecimento cultural e um conhecimento superficial do outro e de si mesmo.

Música, dança, artes visuais estão presentes no universo infantil de uma forma elementar, mas significativa, e acabam por demarcar uma parte da nossa experiência. Nossas memórias artísticas estão carregadas de afetos, significados e sentidos que nos acompanham ao longo de nossas vidas, integrando nossa identidade sociocultural.

Quando a criança é conduzida à experiências de descoberta de diferentes culturas e manifestações artísticas, acaba percebendo, através da vivência, a diversidade dos povos e das artes, as semelhanças e diferenças entre sua própria cultura e a de outros povos. Estas descobertas auxiliam no autoconhecimento fazendo o aluno aprender e compreender, por contrastes e similaridades, a cultura de seu país, e assim, reconhecer e respeitar a cultura de outros povos, sendo assim uma ferramenta que auxilia na construção de nossa própria identidade cultural.

Esta influência cultural na formação das crianças, quando utilizada como tema educativo proporciona também o envolvimento e entrelaçamento da escola, comunidade e sociedade, o que faz com que se amplie o debate em relação as diferenças.


Mikrokosmos é um ciclo de peças didáticas para piano escrito em 1945 por Béla Bartók, compositor Húngaro, considerando o livro como uma série de peças em diversos estilos, representando um mundo musical das crianças. Mikrokosmos também reflete a influência da música popular sobre a vida de Bartok. São 153 peças que estão partilhadas em seis volumes.

Bibliografia

ABDALLA, G e CASTRO, V. África para se ver, ouvir e viver. In: VII SEMINÁRIO DO ENSINO DE ARTE DO ESTADO DE GOIÁS; DESAFIOS E POSSIBILIDADES CONTEMPORÂNEAS CONFAEB 20 ANOS, 2010, Goiânia, Goiás: Universidade Federal de Goiás, 2010. 1 CD.

ALMEIDA, M Berenice de, PUCCI, Magda Dourado. Outras terras, outros sons. São Paulo, SP. Callis, 2002.

BARTÓK, Béla. Mikrokosmos. Boosey and Hawkes, 2004.

HORTÉLIO, L. Casa Amarela. Casa Amarela, 2006. Disponivel em: . Acesso em: 12 Dezembro 2011.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 3ª edição. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.

SAVIANI, Dermeval. A educação musical no contexto da relação entre currículo e sociedade. Anais do IX Encontro Anual da Abem. Belém: Abem, 2000.

SERWADDA, Moses. Songs and Stories fron Uganda. Danbury, CT. Word music Press, 1987.

SILVA, Luciana. Eu vi as três meninas Música tradicional da infância na aldeia de Carapicuíba. 1. Edição. Carapicuíba, SP: Zerinho ou Um, 2014.