Editorial

A aventura da leitura

Para a leitura de um texto literário não há receita. É certo que algumas de suas características enquanto gênero, as pistas deixadas por quem o escreve, os convites à interpretação anunciados nos subentendidos nos levam a possíveis leituras. Ler requer movimento, exercício de composição e sensação de perda. Pensava que era, mas não é. Achei que podia, mas não pode ser. Os sentidos são descobertos. Desvelados. Vejo onde não via, caminho por onde não imaginava caminhar. O olhar percorre as páginas e a imaginação revê seu itinerário.

Gosto da literatura do lugar a que me dirijo como viajante. Foi assim que conheci a obra de alguns autores. Parece que ao ler seus textos, entendo melhor o lugar. Ou leio melhor o texto porque estou no lugar. Não sei bem explicar essas coisas. Assim é como me parece. Se a escrita tem como substância a vida, a vida se dá num lugar. Concreto ou imaginado. Viajar ao ler, viajar lendo, ler ao viajar, vivendo um pouco o que o outro viveu. Será? Imaginar o que ele ou ela tenha vivido, visto, sentido. Constituir uma comunidade de destino com os personagens e com as pessoas do lugar. Compartilhar de suas angústias, de seus medos, inquietações e dilemas. A leitura de texto literário é leitura que se imagina.

Numa dessas aventuras me propus a ler Kafka. Percorro as estantes da livraria com o olhar. Aquele que vagueia tentando encontrar aquilo que o levou até lá. Mas titubeia, foge, paira sobre outras paragens, hesita em ver o que o desafia. Cola no mesmo para ver se a mão se estende e desenha o gesto conhecido. O olhar insiste, perscruta e encontra o livro procurado. Quem sabe seja tão caro, caro a ponto de me fazer desistir de acompanhá-lo?

A Metamorfose não seria minha primeira experiência com a obra do autor. Já havia lido Carta ao pai. Li numa sentada. Numa sentada numa poltrona de avião numa viagem para uma cidade próxima. Escondia por trás dos óculos escuros as lágrimas que escorriam. E pensava, se me virem chorando, mostro a capa do livro. Pronto, quer saber? É por isso aqui que choro. Está bem assim? Entendeu? Ou quer ler para entender? Quem não teve na vida algum pai (biológico, real, imaginário ou simbólico) que em alguma medida se aproxime e o aproxime da experiência narrada? A quem a Carta pudesse ser destinada?

Mas o que faz com que o leitor crie com a obra de Kafka essa relação quase compulsiva que é ler sem parar? Talvez seja o quanto sua obra chama o leitor à interpretação. Sem grandes descrições de personagens, é por suas ações que sentimos o que eles sentem. O narrador não ajuda, não tem piedade das coisas mais estranhas e tristes que podem se passar na convivência humana. Narra. O leitor que se vire com sua discriminação, seu nojo, seu julgamento, suas incertezas, sua (in)compreensão do nível metafórico que há num homem transformado em um inseto monstruoso . Já se sentiu assim em sua própria casa?

Hoje desconfio das interpretações de que a leitura de texto literário é tarefa agradável, prazerosa. Ler por prazer. Literatura? A linguagem é difícil, requer idas e vindas, inquieta, aponta nossas incongruências, nossa ansiedade, nossos desejos, frustrações e fracassos diante de um texto que desafia. O que nos humaniza nunca foi fácil. E na contemporaneidade, torna-se ameaça ao conformismo e à homogeneização.

Se nos humaniza, a literatura nos coloca em contato com os outros que nos habitam, com o estrangeiro em nós, nossos fragmentos de humanidade. Revela que a vida não é uma linha e que atribuir sentidos às coisas exige esforço. A singularidade que se desvela nesse movimento, linda do ponto de vista poético, é fruto de muito trabalho. A leitura como interpretação é processo que requer movimento.

Edições facilitadas de obras literárias se multiplicam nas livrarias. Não se engane leitor. Não existe nenhuma possibilidade de constituição de uma experiência que não seja pela linguagem. Quando o texto literário perde sua literaridade, seu valor inventivo, imaginoso e imagético, o leitor é privado da interpretação. Alguém já o fez por ele.

Celina Fernandes