Marco Antonio Bin

As delicadas fronteiras da alma

II - Memória

Meu irmão partiu. Mais uma vez, cada uma de um jeito distinto, deixando um rastro semelhante, um gosto amargo e uma vaga sugestão de reencontro. Vez ou outra me vem a lembrança de Aureliano Buendía, personagem de García Marquez, que se entrega às incógnitas de renovadas aventuras. Vejo sua partida não mais como antes, quando achava graça em seus movimentos erráticos. A cada vez se torna um pouco mais dolorida, porque o imprevisível não mais se oferece fartamente no horizonte, porque no lugar das extensões infinitas, das dispersões ao sabor do vento, passamos a abraçar a fadiga e com ela, os gestos mais plácidos e duradouros. Se antes aprazia a surpresa dos breves encontros, agora permanecem os rastros marcantes, um olhar sereno, uma palavra pausada, um silêncio mais prolongado, aquilo que persiste em nome da falta, que nos preenche a alma e nos faz imaginar. Marcas de um processo que ao se transformar, nos oferece um presente de perdas. Em outras palavras, o tempo insiste em fluir em sua forma expansível, enquanto envolvemo-nos com a descoberta do momento. Não é o tempo que enrijece, encolhendo-se, somos nós que naturalmente nos voltamos para o desfrute desse presente que se esvai, para o 'congelamento' das minúcias, aqui e agora, ainda que a preservar os devaneios dispersivos. A memória postula-se, ávida, pelas contingências palpáveis, infatigável fonte de mistérios e emoções, enquanto, paradoxalmente, se predispõe ao esquecimento. Ao exercitarmos a condição de vir-a-ser o passado, de algum modo olvidamos serenas impressões, delicados ensejos, sem jamais recuperarmos o mesmo ter sido que é, o que pode ser trágico, embora nada que se compare com a consciência da ausência indesejada.