Mario Luiz Ferrari Nunes

Humor e Terror: ou como manter o Outro à distância

Ao me deparar com a repercussão acerca do atentado terrorista realizado na redação do jornal írico francês Charlie Hebdo, imediatamente me vieram à mente as notícias acerca do massacre ocorrido na Nigéria, produzido dias antes por extremistas do grupo Boko Haran e aparentemente provocado pelo mesmo motivo: a intolerância religiosa. Se o primeiro caso causou comoção nas mídias sob a bandeira de ataque à liberdade de expressão da imprensa, no segundo, pouca ou quase nenhuma ênfase foi dada a um evento de maior proporção e também de ataque à liberdade. Cabe indagar por que esses ataques se repetem e, assim sendo, por que a mídia pouca relevância deu ao caso da Nigéria? Com certeza, há uma questão geopolítica.

De qualquer jeito, se a questão religiosa, envolvendo o islã parece ser o mote dessas aberrações, outras como o massacre na Noruega, em 2011; os constantes ataques dos grupos neonazistas a negros, gays e imigrantes, empreendidos ao longo das duas últimas décadas em vários países da Europa e, por estas bandas, a gritaria da direita conservadora por conta de sua quarta derrota nas urnas para o executivo federal, parecem querer dizer algo mais. Diante de tantos horrores, o que me incomoda, de fato, é o recrudescimento das formas de agir para manter o Outro à distância ou eliminá-lo e afirmar tal condição sob a bandeira da liberdade de expressão, da pureza cultural ou da manutenção do sentimento de nação. Onde tudo isso começa em cada um de nós?

Quando era pequeno, escutava alguns conselhos esparramados no senso comum. Cuidado com o homem do saco! Diga-me com quem andas, que te direi quem és! Cuidado com aquela gente mal educada! Nunca fale com estranhos! ‐ esses e outros dizeres compunham a cena. O homem do saco me fazia temer os mendigos que catavam coisas na rua para a sua sobrevivência; do mesmo modo, redobrava o cuidado com a escolha de amigos que carregavam sinais de desaprovação social; temia os transeuntes que se aproximavam para obter uma informação ou partilhar algum espaço público, como banheiros, transportes coletivos, parques e até o espaço na areia da praia. A esse temor, acrescentava-se o negror da pele, tatuagens, cicatrizes, a barba por fazer, cortes e cores dos cabelos ou as condições de higiene pessoal. No caso de outras marcas corporais, a preocupação poderia virar zombaria, como as deficiências de locomoção, modos de falar, tipos dos olhos, obesidade, verrugas e, se envolvesse a sexualidade, seja a feminina, a homossexual ou as "trans" a coisa ficava mais agressiva. Hoje, quando tento conhecer a mim mesmo, ou seja, a trajetória, as práticas e os discursos que me constituíram, fico a pensar que não foi à toa que cresci com certo ar de estranhamento e superioridade frente aqueles que pouco ou nada pareciam comigo.

Com pouco esforço, essas estratégias de invenção do outro, logo de nós mesmos, são facilmente identificáveis. De cara, posso destacar as familiares, religiosas, geracionais, midiáticas, políticas e as escolares entre outras.

Em casa, como filho de imigrante herdeiro da colonização, imperavam ares de superioridade diante dos nativos, vistos como indolentes e de outras etnias ora vistas como respeitáveis ora vistas como oportunistas ou inferiores. Vinculado à formação de tradição cristã, qualquer coisa fora das Leis de Deus era tida como imoral ou pagã. No grupo de amigos, tanto os mais novos como os mais velhos, sem falar na turma da outra rua, sofriam marcações negativas e não podiam andar com a patota.

Na escola, a coisa é mais emblemática. Como construção da Modernidade, a escola tem como função a constituição da identidade nacional como ponto principal de governo das populações. Afinal, esse momento histórico da humanidade marca o fim dos sistemas feudais e absolutos e instaura outras formas de economia, organização e, por conseguinte, regulação e controle social. Desse momento, decorrem todos os esforços da cultura escolar para criar e oferecer experiências de aprendizagem para a formação dos sujeitos que possam fazer a sociedade moderna funcionar. Para tanto, a identidade nacional atua como estratégia de unificação dos seus sujeitos, sendo que esta seria uma espécie de guarda-chuva de identidades, hierarquicamente superior às demais como as de classe, gênero, opção sexual, profissão, raça, idade etc. A nação delimita fronteiras entre o "nós" e o "eles" e é fruto da aproximação entre o território domiciliar e a soberania individual do Estado, criando um sentimento de pertença e identificação entre os sujeitos e si mesmo. A identidade nacional seria, então, uma forma prioritariamente de exclusão e a garantia central da coesão de uma sociedade, regulando sujeitos e interesses diversos.

A identidade nacional, apesar de soberana na Modernidade, não bastava. Em outros momentos de convivência entre pares e ímpares é preciso dizer quem somos nós e quem são eles; os outros. É preciso especificar os que podem ficar, falar, fazer e os que não podem; os que podem significar e, com isso, produzir a verdade e os que têm que se submeter à significação. A escola reforçava, então, a dominação cultural ao transmitir os saberes da cultura branca, patriarcal, heterossexual, cristã, adultocêntrica, norte-ocidental, meritocrática, financeira características da burguesia industrial e da racionalidade científica, estabelecendo o nós para os que aprendiam e carregavam essas marcas e a pecha de estranho para aqueles que não se adequavam ao currículo. Como aparelho de Estado, a escola contribuiu decisivamente para a criação de padrões sociais de referência a partir dos modos de ser transmitidos dos grupos culturais citados. Cabe lembrar que estranho é o mesmo que estrangeiro. Ou seja, ao marcar o Outro como estranho, alguém a ser corrigido, a escola contribuía para a propagação da identidade nacional e o consequente estranhamento dos outros.

Não foi à toa, por exemplo, que o esporte moderno com seus campeonatos locais e internacionais ganhou espaço na sociedade e o orgulho de suas equipes vitoriosas substituiu, simbolicamente, a conquista das forças bélicas. Há mais! Em seus estudos, o filósofo francês Michel Foucault indica que em defesa dessa sociedade, a Modernidade criou o racismo de Estado, e assim atua na vigilância para identificar e punir aquilo que ela mesma criou: a delinquência, a degenerescência, o louco e outros sujeitos tidos como monstruosos, colocando-os à margem dessa sociedade.

Propagadas em casa, na rua, no culto as formas dominantes de ser eram reforçadas pelas mídias de massa e pela política partidária, reverberando os discursos presentes nos aparelhos de Estado. No caso das mídias, nas telenovelas, programas de humor e filmes a pecha do diferente vem, muitas vezes, acompanhada da sátira, desqualificando o Outro pelas suas condições culturais e também o inferiorizando pelo nível da escolarização obtido e pelos regionalismos.

A sátira é uma modalidade da literatura que procura expor ao ridículo algum pensamento, pessoa ou instituição. Diante disso, é interessante citar a frase atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoievsky: "A tragédia e a sátira são irmãs e estão sempre de acordo; consideradas ao mesmo tempo recebem o nome de verdade". O que as sátiras como as das produções massivas ou as do Charlie Hebdo produzem na relação entre Nós e Eles? Vontade de verdade para quem pertence a "Nós" e efeitos nefastos para "Eles". Isso sem dúvida, é visível.

Na midiatização política a coisa contínua. Lembro-me bem de notícias que envolviam certos grupos internacionais e nacionais. Panteras Negras, SWAPO, Tupamaros, OLP, Brigada Vermelha, Baader-Meinhof, ETA, IRA, todos eram narrados e descritos como terroristas, fora da ordem etc. No Brasil, essa condição era da ALN e mais adiante do MST. No fim dos anos 1980, aprendi que existiam outros grupos religiosos como os xiitas, que inventaram o Hezbollah. Depois, nos anos 1990, com o fim da URSS vários povos reivindicavam a condição de Nação. Entendi que além dos palestinos, havia mais povos na condição de sem pátria, logo errantes, ciganos. Foi a vez de observar que os povos dos Balcãs eram capazes de atrocidades que aprendi ser próprias de povos bárbaros ressignificados na Modernidade para os não ocidentais e, mais específico para os africanos e os mulçumanos. Depois, a Al-Qaeda ganhou destaque e por que não dizer o PCC e Comando Vermelho por aqui mexeram com a ordem social. A todos eles acrescenta-se a histórica propagação negativa do ideário comunista. Sem a menor cerimônia, as mídias colocavam-lhe rótulos que transitavam da comilança de criancinhas até ao incentivo a vagabundagem ou a escravização dos ricos. E o que dizer dos comentários acerca do movimento feminista, então? Tudo parece indicar temor por vingança dos tempos idos.

A questão é que nas mídias informativas de massa a condição da sociedade é naturalizada e a esses grupos atribuem-se nos noticiários a culpa pela desordem, a ameaça concreta ao Estado do bem estar social, à família, às crianças, enfim às pessoas de bem. Em tempos de revolução dos meios de comunicação, as redes sociais fazem o mesmo acrescentando toques de sátira e crueldade. São poucos os espaços de comunicação em que se aborda a conjuntura da instauração desses movimentos de resistência. Não se observam denúncias que indicam: a escolarização do mundo como estratégia de dominação capitalista e colonial; a desqualificação dos conhecimentos não ocidentais; a inferiorização dos povos, seus costumes e a exploração de seu meio-ambiente; a desigualdade financeira das e entre as classes trabalhadoras; as condições insalubres do trabalho; a discriminação dos marginalizados entre tantas situações de opressão. O que importa é pensar que tanto o humor como o terror são maneiras similares de manter o Outro à distância. é por aqui que a sátira e a tragédia, o humor e o terror se articulam.

Escola, culto, mídias, partidos políticos, esportes são tidos para o filósofo Luis Althusser como aparelhos ideológicos de Estado. Como nasci e cresci em meio a todos eles, também participei dos esforços para a manutenção dessas fronteiras e invenção do Outro. Triste momento! Deparei-me comigo mesmo.

Um estudo mais apurado das condições de existência do Outro e de seus grupos de resistência permite observar o que o projeto da Modernidade realizou. Obcecados pela universalização da cultura ocidental do Norte, os inventores da Modernidade criaram suas próprias armadilhas e contradições. Para a análise desse processo, a figura do monstro ajuda a compreender essa obsessão. Monstrum, em latim, indica mostrar, advertir. O Outro, enquanto produção da Modernidade, historicamente funciona como advertência a respeito do que vem ocorrendo em seu interior. Inventado, colocado em circulação, o Monstro aterroriza seus criadores, que não percebem ou esquecem que o mesmo é sua invenção. Para garantir o funcionamento da sociedade e aliviar seus sujeitos da descoberta que ele também é uma produção, cria-se, a todo instante, formas e justificativas para capturá-lo e controlá-lo. é preciso ridicularizá-lo, satirizá-lo.

A esquerda é uma invenção da direita, o comunismo nasce das contradições do capitalismo, o oriente foi produzido pelo ocidente, a pobreza é filha direta da riqueza, a negritude surge da branquitude, o fundamentalismo decorre da homogeneização e por aí vai. Inventa-se, inviabiliza-se, extermina-se. Ao ser produzida, a Modernidade instaurou a sua própria crise e as bases de sua transformação.

Acho que é por isso que o humor e o terror constituem a nossa crise de identidade!