Raphael Doria

Um olhar estrangeiro em terras longínquas

A minha primeira viagem para fora do país havia sido para Long Island em Nova Iorque aos 26. Tenho até hoje a imagem e sensação do primeiro dia, a de estar em um filme da sessão da tarde: as famosas lavanderias, lanchonetes e mercadinhostípicos, muitos com as tradicionais bandeiras americanas. Poucos anos depois em Gold Coast, na Austrália, o que me marcou logo de cara foram as lindas cacatuas que voavam livremente por aquele bairro de subúrbio. O sentimento era de aventura, encantamento e excitação. Mal podia esperar para descobrir coisas novas. 

Recentemente, aos 43 anos e já casado há cerca de 4, viajei para Toronto, no Canadá. Interessante que vasculhando minha memória afetiva acerca dos momentos nessa terra tão distante não me recordo da mesma excitação. Talvez a maturidade nos torne mais cautelosos, mas o fato é que o olhar curioso ainda era vívido, e o estranhamento diante do novo, inevitável.

Foram tantas as coisas que me impressionaram nessa cidade de cerca de 3 milhões de habitantes, a mais populosa do país e também considerada uma das mais multiculturais do mundo. Eu me senti em Guerra nas Estrelas com todos aqueles seres das mais remotas partes do universo. Era incrível ver aquelas vestimentas magníficas: indianas, africanas, islâmicas,... e as línguas então? Conforme as pessoas passavam era como se sintonizasse uma estação de rádio de cada parte do mundo. Ouvia-se inglês, francês, chinês,... Ah! Não posso me esquecer dos infindáveis festivais étnico-culturais com suas danças e comidas típicas: colombianos, tailandeses, italianos,... Era julho, verão, e a cidade fervilhava na temporada mais alegre do ano. 1

Mesmo assim o sentimento que imperava era o de segurança e confiança. Segundo o site da prefeitura, Toronto é considerada a cidade mais segura da América do Norte. De fato, vi casas sem muros - e como havia casas! Prédio mesmo só no centro e a maioria comercial. Aliás, melhor assim, pois podíamos nos deleitar apreciando os exuberantes jardins, uma verdadeira febre por lá, tem até pacote turístico para visitá-los! – e pessoas portando seus smartphones e notebooks nas ruas sem medo. Claro, que havia notícias de violência e roubo, mas eram tão poucas que se recomendava apenas deixar sua casa trancada ao sair e não transitar por lugares desertos tarde da noite.

Mas melhor ainda que sentir-se seguro é ver que as pessoas confiam em você. Surpreendi-me no Walmart ao perceber que as pessoas podiam transitar com seus carrinhos cheios de compras pela praça de alimentação que ficava para além dos caixas, sem necessariamente terem de pagá-las primeiro; espantei-me ao entrar com um grupo enorme de estudantes em uma excursão pela porta de trás do bonde elétrico e só depois de um tempão ao perguntar ao motorista se ele queria ver nossos passes ele ter respondido que não me preocupasse que estava tudo bem; admirei-me nos ônibus ao ver as pessoas depositando diversas moedas no coletor sem nenhuma verificação por parte do motorista; fiquei maravilhado em notar que em todas as estações de metro havia um portão sem catracas, de entrada livre exclusiva para os passageiros de ônibus, e muitas vezes de acesso fácil da rua (ou seja, qualquer transeunte mal intencionado poderia entrar por ali).

Tudo bem, há sansões bem rígidas aos infratores que forem pegos, mas em primeiro lugar confia-se! Chamou-me a atenção o fato das filas não serem apertadinhas para que ninguém as fure. Eram espaçadas e as pessoas conversavam distraidamente sem se preocupar com o espaço entre elas.

Essa confiança, creio, é consequência do que arriscaria dizer tratar-se de um valor torontiano, quiçá canadense: o respeito às regras. Respeito esse que presenciei diversas vezes nos espaços públicos. Os motoristas de fato paravam antes da faixa para os pedestres a atravessarem. Um que vinha em razoável velocidade freou com tudo quando estava me preparando para cruzá-la. Talvez ele estivesse distraído e não tivesse me visto antes. Mas eu ainda não estava nela, ele bem poderia ter seguido para evitar o estresse da freada brusca. Mas o valor de se respeitar a regra da faixa estava tão assimilado que se manifestou inconscientemente.  

Poderia mencionar ainda as pessoas que frequentemente deixavam as outras saírem dos trens para só depois entrarem, que deixavam a esquerda livre na escada rolante e dos pedestres que seguiam seriamente um surpreendente sistema de trânsito nas calçadas mais movimentadas da cidade no qual havia dois sentidos opostos. E, ainda, aqueles que desejassem parar se locomoviam para áreas de recuo.  Eu sei que isso pode soar um pouco exagerado, ‘ultra-regrado’ mas não é bem assim. Há um bom senso do canadense que o faz atravessar fora da faixa quando necessário, que por vezes faz chiques piqueniques com bebidas alcoólicas escondidas em sacos de papel (lá beber publicamente é proibido) ou faz vista grossa, principalmente no caso da polícia, ao ver pessoas fumando maconha nas ruas (lá só é permitido fumar canabis em locais licenciados). Ao final a sensação que fica é que o sistema embora imperfeito, funciona, gera resultados positivos (tranquilidade, economia de recursos,...) e contamina a todos – até nós turistas rapidamente entramos no clima.  

Então por que eu não vou morar lá? Bom, não existe paraíso na terra. Estou por demais acostumado com o calor brasileiro e quando digo ‘calor’ quero dizê-lo em todos os sentidos: ambiental e humano. Só lá pude constatar um fato para mim bem interessante: aqui no Brasil nós nos cumprimentamos mesmo sem nos conhecer! E isso vale para uma cidade tão grande quanto São Paulo. Reparem: nós cumprimentamos os outros com um acenar de cabeça ou mãos, às vezes seguido de um “Oba!” ou algo assim apenas porque já vimos aquela pessoa antes ou nem isso, simplesmente porque cruzamos nossos olhares em um lugar menos movimentado. Lá não mesmo! Espantei-me com a “frieza” de muitos torontianos.

Quantas vezes meus cumprimentos e acenos ficaram no vazio. Muitas vezes ao pedir informações na rua - e o modo como se dá informação a um turista é um grande termômetro de acolhida de um povo – recebi respostas curtas e ríspidas. Tive uma experiência que até me chocou. Um recepcionista que me pareceu de origem indígena em um centro cultural aborígene me perguntou assim que cheguei se estava sob o efeito de drogas e que se caso estivesse deveria deixar aquele estabelecimento imediatamente. Ao perguntar chocado o que indicaria tal suposição, o senhor respondeu que era o modo pausado como eu falava. Em um centro turístico não deveria estar ele acostumado com pessoas que tivessem dificuldades com a língua inglesa e por isso falassem devagar ou com pausas? As razões de tais condutas são misteriosas para mim.

Claro que houve exceções, que aliás situavam-se no outro extremo (como o clima canadense): pessoas bastante calorosas e abertas como minha querida anfitriã Patricia, uma colombiana com a qual troquei confidências e firmei um laço de amizade que o tempo não apagará. Sua vizinha Teresa, uma canadense de origem britânica, que em meu primeiro dia em Toronto foi logo puxando conversa comigo e sem me conhecer direito convidou-me para participar de uma aula de danças folclóricas escocesas com seu marido (a que, aliás, fui e amei!). Ou uma moça, presumo, de origem europeia, muito bem vestida com quem não me lembro de como comecei a conversar na rua sem medo (acho que nem aqui em São Paulo isso seria provável).

Poderia dar mais alguns exemplos, mas me lembrei de um fato curioso. Estava já há algum tempo na cidade e eu e Patricia havíamos saído de carro em um dia bem ensolarado. De repente percebi que seus faróis estavam ligados. Ao alertá-la disso ela me explicou que lá a lei obrigava os motoristas a deixar os faróis baixos acessos durante o dia. Foi aí que olhei em volta e só então me dei conta de que todos os carros tinham seus faróis acessos. Achei curioso depois de tanto tempo em Toronto não ter percebido isso antes. Pensei: puxa como nossa percepção é limitada! Quanta coisa nos escapa! Precisamos de inúmeras aproximações para compreender algo e talvez ainda assim isso não seja suficiente para se chegar à totalidade dos fatos. Por isso, creio que apesar de todos os meus julgamentos serem questionáveis – por sorte pois assim cada um poderá olhar com seus próprios olhos de estrangeiro - o espanto diante do novo será inevitável e nesse jogo de contrastes certamente não voltaremos os mesmos.


1 - Os Torontianos são provenientes de mais de 200 etnias e falam mais de 140 línguas e dialetos e metade deles nasceram fora do Canadá. Cf. http://www.toronto.ca/toronto_facts/diversity.htm