Celina Fernandes
De professores, alunos e conhecimento
Para meu aluno Emerson.
Na esperança de que continue a estudar.
Foi em janeiro de 2006 que conheci Michael.
Havia sido contratada para dar um curso a um grupo de professores alfabetizadores no recesso escolar de dezembro de 2005/janeiro de 2006. O curso fazia parte de um projeto da secretaria de educação de um município do litoral paulista, e tinha como objetivo oferecer condições para que um grupo de alunos se alfabetizasse.
Minhas dúvidas sobre a possibilidade de coordenar um grupo de professores nesse contexto já haviam sido explicitadas aos responsáveis da secretaria. Nunca fui alfabetizadora. Havia iniciado reflexões e estudos sobre o tema três anos antes. Contei, nesse período, é verdade, com a generosidade de uma amiga, Rosa Antunes, grande alfabetizadora, que nos retornos de cursos que ministrávamos em outro município, pacienciosa acolhia minhas curiosidades. Daquelas conversas, da experiência compartilhada, das referências bibliográficas citadas fui compondo um repertório, ampliado de forma autodidata e de cujo resultado sempre desconfiei.
Assim, disse “talvez fosse melhor contratarem outro profissional. E eu poderia dar-lhes indicações.” Insistiram na contratação, justificando que o pedido fora dos professores com quem havia trabalhado no ano anterior, em projetos que visavam a contribuir com o aprimoramento do trabalho em Língua Portuguesa.
Desenhamos uma assessoria marcada por dois momentos. Um primeiro, que aconteceria em dezembro, com a socialização das questões que os professores traziam e estudos para a identificação dos problemas e elaboração de intervenções adequadas. Retomávamos, assim, os saberes que tínhamos sobre o processo de alfabetização e os ampliávamos com os saberes partilhados e leituras. Um segundo, em que os professores davam aulas em uma das escolas da rede pela manhã e, à tarde, traziam para a secretaria as questões que haviam surgido, os desafios e as conquistas. A mim, além de coordenar essas conversas, cabia acompanhar o trabalho desenvolvido nas escolas no período matutino.
Foi num desses encontros da tarde, que uma professora me pediu para ir à escola em que trabalhava. Ela me dizia que tudo que já havia feito não tinha sido suficiente para que um de seus alunos se alfabetizasse. Na verdade, dizia ela, a dificuldade era que não sabia o que ele sabia. Ele não respondia a suas perguntas. E não produzia texto algum.
Cheguei à escola no outro dia pela manhã. Ela ficava num dos bairros mais pobres do município, surgido a partir de loteamentos clandestinos, pouco ainda atendido em relação à infraestrutura básica e marcado por altos índices de violência, cujas vítimas também eram as crianças. Queimadas por pontas de cigarro, surradas com cintos, passavam o dia muitas vezes sozinhas ou cuidadas pelos irmãos mais velhos.
Michael estava sentado numa carteira que havia sido colocada num lugar do pátio. Me esperava. Em sua frente, uma carteira para mim e lápis, borracha, caneta e papel sulfite. Uma funcionária me levou até ele. A professora trabalhava numa sala de aula com os outros alunos.
Já sabia seu nome, me apresentei e lhe perguntei se sabia por que estávamos ali, o que iríamos fazer. Nada. Nem uma palavra. As mãozinhas sobre a carteira, o olhar nos meus olhos. Esses eram os índices que eu tinha de que ele queria conversar, embora parecesse um tanto assustado. Expliquei que estávamos ali porque a professora não sabia se ele sabia ler e escrever. E que eu, assim como ela, também queria muito saber e para isso a gente iria conversar.
Tive receio de iniciar perguntando sobre os nomes de pais, amigos, colegas. Achava que esse poderia ser um caminho difícil, que talvez não levasse à interlocução. Perguntei qual era o dia de seu aniversário. Os olhinhos brilharam e ele me disse. (Infelizmente, minha memória não guardou essa data.) Lembro-me de que sua resposta me levou a lhe perguntar se ele tinha festa de aniversário. E ele me respondeu, que não, baixando as mãozinhas da carteira, deixando cair os braços.
Continuei, aparentando firmeza, mas com um medo de que os olhinhos que ainda brilhavam deixassem de brilhar. “No seu aniversário, não tem nada de diferente? Assim... de diferente para comemorar?” “Às vezes tem. Cachorro quente.” As mãozinhas de novo sobre a carteira. “E você gosta de cachorro quente?” “Sim, gosto.” “E bolo? Não tem bolo?” “Não, é muito caro. Minha mãe diz que gasta muito gás.”
Aí a firmeza foi embora. Um silêncio se impôs. Silêncio que revelava a distância que havia entre os mundos, as histórias, as estratégias de ensino e os alunos, o desconhecimento. Por maiores que fossem minha sensibilidade e meu compromisso – percebidos pela criança cujos olhinhos acreditavam – eu agora sabia que não sabia nada. Não de alfabetização. Nem de como as pessoas vivem. Nessa época já conhecia a vida difícil de muitos lugares. Não sabia do descompasso entre as estratégias de ensino e certas formas possíveis de viver e de seus sujeitos já tão assujeitados. Não sabia da precariedade de meus recursos para inventar, criar diante daquilo que se apresentava.
Michael ainda ali, na minha frente, me olhava. Contive a vontade de chorar. Por ele, pelo caminho tortuoso da conversa que era preciso refazer, pela busca da interlocução. “Você já foi a uma festa de aniversário?” “Já, de um primo”. “E o que havia nela?” Ele começou me dizendo das bexigas. Era uma criança. “Bexigas? Que bacana! E o que mais?” “Cachorro quente, brigadeiro, refrigerante e bolo.” “E qual é o nome de seu primo?” Ele me disse, mas não me lembro.
“Vamos escrever o nome do seu primo?” “Eu sei. E também sei escrever o meu nome.” “Então, vamos começar pelo seu nome.” “Também sei escrever o nome do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos...” “Então, vamos escrever todos esses nomes e depois, o que havia na festa de aniversário.” E assim foi. Uma mãozinha apoiava o papel e a outra, segurava o lápis. Michael escreveu tudo. Apagava o que achava que não estava certo e escrevia de novo. Respondia, com disposição, às intervenções que eu fazia em relação a sua escrita.
Ao final, sorriu. Sorri também.
Entre pessoas há muito mais do que o receituário tecnicista insiste em fazer de boas abordagens metodológicas.