Leonardo Cordeiro, por Regina Magalhães de Souza

Direção para perder o controle

Conheci Leonardo Cordeiro pouco mais de um ano depois das chamadas Manifestações de Junho, num final de tarde de agosto 2014, quando, gentilmente, ele me concedeu esta entrevista. Logo “de cara”, me encantei com ele, assim como havia me encantado com as Manifestações. Membro do Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), Leonardo é um rapaz de 20 anos, que demonstrou amadurecimento e firmeza de convicções, mas também doçura e humildade, ao falar sobre ideais, princípios e estratégicas políticas. Muito se fala e se espera, hoje em dia, por uma “renovação na política” e por “novas formas de política”, mas a própria formulação dessas expectativas já é velha. O novo, mesmo, talvez esteja nascendo aí, na “direção para perder o controle”, da qual me falou Leonardo. O texto que segue é uma edição de mais de duas horas da conversa que tivemos.

Regina (R): Como você descobriu o Movimento Passe Livre, ou o MPL descobriu você?

Leonardo (L): Eu conheci o movimento quando estava no segundo ano do ensino médio, em 2010. Meu irmão freqüentava um espaço autogerido lá no centro, do qual várias organizações participavam, e que era também a sede do Passe Livre. E ele me chamou para participar da luta contra o aumento de 2010, quando a tarifa de ônibus foi de R$ 2,30 para R$ 2,70. Eu fui, comecei a ficar interessado. Foi uma luta bem pequenininha, os atos foram pequenos, mas teve alguma repressão policial. Existe uma foto famosa dessa época, de um cara com a mão levantada, e o policial jogando spray de pimenta no olho dele. E eu me encantei pelo movimento, comecei a participar primeiro das reuniões da rede, que eram as reuniões abertas, com várias outras organizações. Nas reuniões da rede eu comecei a perceber também a diferença entre o MPL e outras organizações políticas: o oportunismo com que algumas organizações tratavam a luta contra o aumento, para se projetarem, e tudo mais. Foi o que me levou a me aproximar mais do pessoal do Passe Livre; comecei a acompanhar as reuniões e participar de formações. No fim de 2010 e começo de 2011, aconteceu uma luta grande contra o aumento, quando a tarifa subiu para R$ 3,00. Foram três meses de protesto, e nessa época eu consegui levar várias pessoas para o movimento também. Eu era do grêmio da minha escola; e o coletivo de vários grêmios fazia uma série de atividades, principalmente em escolas particulares e algumas escolas técnicas. O pessoal estava interessado, e então a gente participou mais efetivamente, por dentro dos protestos, dessa luta de 2011.

(R): O Passe Livre trabalha com um pessoal de ensino médio, ele vai até as escolas, é isso?

(L): É isso. É uma tradição do movimento, desde o início. Sempre que a gente vai falar da nossa história a gente volta para 2003, para "Revolta do Buzu", uma revolta que aconteceu em Salvador contra o aumento da tarifa; o interessante é que ela foi protagonizada, principalmente, pelos estudantes secundaristas. Eles pulavam os muros das escolas públicas, saíam da aula e iam para a rua, trancavam cruzamentos em vários pontos da cidade. Não era exatamente manifestação, eles ficavam parados, nessa tática que eles chamavam de "tranca rua". Em cada um desses cruzamentos, eles faziam assembleias. O dia seguinte era decidido, ali, naquelas assembleias, em cada cruzamento. Era uma coisa bem horizontal mesmo, e tudo meio espontâneo.

(R): Irrompeu...

(L): Foi uma coisa que irrompeu puxada pelos estudantes secundaristas, talvez já tivesse alguma organização, mas não era nada tão forte, uma organização, mesmo, tentando dar um sentido para aquilo. Ela chamou a atenção de militantes no Brasil inteiro, porque era muito grande o que estava acontecendo. O pessoal de Salvador estava usando um centro de mídia independente, um site em que as próprias pessoas podiam publicar conteúdo, e o Brasil inteiro acompanhava. E todo mundo acompanhou o final também dessa revolta, que foi um tanto trágico, porque o interlocutor que acabou sendo reconhecido pelo governo para iniciar uma negociação foram as organizações estudantis de Salvador. E elas sequestraram o movimento, apresentando as suas pautas. Elas foram negociar com o governo apresentando dez pautas, quando, na verdade, a pauta era única: contra o aumento da tarifa. Justamente a décima pauta, não atendida pela prefeitura, foi a revogação do aumento do ônibus. Os membros dessas organizações foram rechaçados pelo movimento na rua, até mesmo violentamente, mas não se conseguiu reverter a situação.

Então, desde o início, o movimento surge com um protagonismo dos estudantes secundaristas. Muita gente do Brasil inteiro estava com os olhos voltados para isso. Existiram várias campanhas, desde o começo da década de 2000, pelo passe livre estudantil; talvez fosse essa um pouco a linha da juventude do PT nesse momento. Um grupo trotskista, de Florianópolis, que havia rompido com o PT, porque estava buscando mais independência, começou a passar um vídeo da Revolta do Buzu nas escolas secundaristas, já preparando a revolta. Eles sabiam que haveria um aumento, e prepararam, inclusive, uma forma prévia de defesa contra as organizações estudantis. Eles conseguiram construir um rechaço a essas organizações.

E aí, em 2004, eclodiu uma revolta muito grande, em Florianópolis, que foi vitoriosa. A vitória fez com que aqueles militantes do Brasil inteiro, que já estavam acompanhando as revoltas, se animassem e começassem a construir mais coletivos pelo passe livre estudantil nas suas cidades. Em 2005, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, se constituiu um movimento nacional pelo passe livre.

Aqui em São Paulo aconteceu uma luta grande em 2006, com muita repressão. Aquela foi uma manifestação que ficou muito guardada na memória dos militantes, porque eles foram fechados dentro do Terminal Parque Dom Pedro. E aí os terminais viraram “símbolo”: conseguir entrar e sair de um terminal passou a significar vencer aquela repressão que havia acontecido. E desde 2006, a polícia tentava não deixar a gente entrar, passar dentro dos terminais, mas era sempre um ponto para onde a gente queria ir.

Só em 2006, 2007 é que o movimento vai entrar em contato com a proposta da tarifa zero, principalmente por meio do Lúcio Gregori, que foi Secretário Municipal de Transportes na administração Luiza Erundina. Com o passar do tempo, os militantes, que eram estudantes, foram se tornando trabalhadores, então, o Movimento deixa de ter uma visão simplesmente do passe livre estudantil. O encontro nacional do movimento, em 2007, começou a debater a tarifa zero, mas na nossa Carta Nacional de Princípios, ela só foi incluída no ano passado.

Esses dois elementos estão na gênese do MPL, tanto um rechaço às organizações tradicionais da esquerda, quanto a horizontalidade. O MPL nasce de um rechaço às organizações tradicionais. Autonomia e a independência são os princípios do movimento, além do trabalho em escolas, com o ensino médio, principalmente. Então, o Movimento nasce com esse trabalho em escola. Aqui em São Paulo, desde 2005, o pessoal passa em escolas. A Lapa é um lugar onde há essa relação forte com as escolas, com alunos que foram do MPL e hoje são professores.

(R): O MPL tem uma Carta Nacional de Princípios?

(L): Sim. Ela sofreu algumas alterações ao longo dos encontros nacionais, que não aconteceram de 2007 até o ano passado. Isto porque um dos outros princípios é o federalismo, a completa autonomia dos coletivos, desde que sigam os princípios. Só quando todos os coletivos passaram a defender a tarifa zero – o que foi um longo processo –, é que mudamos a Carta.

(R): Fale do trabalho nas escolas: como vocês chegam numa escola? Pelos alunos, pelas bordas, se infiltrando, ou chegam lá na direção e dizem: “dá licença, queremos bater um papo”.

(L): Tem vários jeitos. É sempre mais legal chegar pelos alunos. Se os alunos chamam você do MPL é muito legal. Mas é raro. Os professores são, muitas vezes, um caminho. Existem muitos professores mais jovens, ou mais velhos também, nas escolas públicas, que têm o interesse de desenvolver um pensamento crítico com os alunos, alguns têm projetos de apresentar aos alunos os movimentos sociais. Muitas vezes, os professores são uma porta de entrada, mas, às vezes, é a própria direção. A gente escreve um projetinho de trabalho com os alunos, às vezes como Movimento Passe Livre, às vezes não. Falar o nome MPL era um pouco mais tranquilo antes de junho. Por outro lado, agora que o Movimento está organizado em comissões, as próprias comissões também têm os seus nomes. Chegando às escolas, normalmente, a gente dá uma aula em sala, tentando pegar todas as turmas de ensino médio. Às vezes damos uma segunda ou terceira aulas, com projetor, vídeos. Nós já temos alguns esquemas de aula prontos, esquemas de aula desenvolvidos há anos no movimento, que vão passando entre os militantes. A gente coloca na lousa: “quais coisas vocês fazem na cidade”, “para onde vocês vão”, “que coisas são importantes na cidade”. A gente começa a mostrar como para chegar a todas as coisas precisa usar o transporte. Só que para usar o transporte você paga, aí começa a discussão: “mas isso não é um direito?”. Perguntamos: “A gente paga para ir à escola?”. E a resposta: “Não”. Continuamos: “Mas para chegar à escola a gente está usando o transporte? Então a gente está pagando para chegar na escola”. Algumas discussões chegam até à questão da segregação na cidade, da alienação daquilo que os próprios trabalhadores constroem: “A gente faz a cidade, mas a gente não pode acessar a cidade”. Mesmo para a gente que é militante, as coisas vão ficando mais claras, justamente nesse debate com os alunos, eles vão nos mostrando.

Discutimos com os alunos como não é só o preço do transporte que impede as pessoas de circularem pela cidade, mas a qualidade, a lotação e a frequência. Muitos deles já dormiram em banco ou foram a pé para casa porque à noite não há transporte. As meninas falam: “tem que pegar o cara de carro, senão que hora eu vou voltar para casa?”. Aparece também o problema dos assédios nos ônibus, a gente até estava para planejar uma atividade específica sobre isso. Esse problema está vindo bem à tona, como a proposta do vagão rosa (proposta, posteriormente vetada pelo Governador Geraldo Alckmin, de haver um vagão exclusivo para mulheres nos trens do metrô e da CPTM).

(R): E como você esta vendo essa moçada de ensino médio, de maneira geral?

(L): Ah, tem muita revolta, um sentimento muito grande de revolta.

(R): Eu suponho que haja muita insatisfação com a escola, muita falta de identificação com a escola.

(L): A situação da escola é muito grave, mas já está num grau tão absurdo, que não imagino como resolver. Isso guarda também certo potencial explosivo. Isso não aparece nos jornais, mas rebeliões são muito comuns nas escolas públicas, e não só da periferia, tal como as rebeliões de presídio, porque as escolas são parecidas com presídios. Acontece alguma coisa, todos os alunos saem, os professores se trancam em salas e os alunos quebram tudo, quebram tudo. Numa escola em que a gente trabalhou, havia ocorrido um episódio com os alunos, e nem eram de ensino médio, eram do ensino fundamental, eu acho. Eles chegaram mais cedo na escola, às quatro e meia da manhã, e tacaram fogo, ou seja, incendiaram uma parte da escola. Existe uma raiva, um ódio, muito grande com as escolas. Isso é algo muito grave, eu tenho vontade de ser professor de ensino médio, mas fico muito triste com isso. Existem alunos e professores que se tornam inimigos, justamente nesse tipo de relação em que não deveria haver essa oposição, esse antagonismo.

Uma parte dos alunos a gente sempre conseguiu trazer para as manifestações. São muito poucos aqueles que entram, de fato, no MPL. Mas a gente não tem, e não teve nesses dez anos, o objetivo de crescer enquanto organização, absolutamente. A gente pensa em manter um nível de militantes; às vezes o número reduzia muito e a gente ficava preocupado...

(R): Então, o objetivo com o trabalho nas escolas é mais realizar uma formação política, digamos assim.

(L): Exatamente, às vezes, é um trabalho de agitação.

(R): Dá para estimar quantos militantes tem agora o Passe Livre?

(L): Nenhum dos coletivos é muito grande. Nunca foi tão claro identificar quem é do Passe Livre e quem não é. É um movimento que tem gradações, ou seja, algumas pessoas são mais próximas, outras estão ao redor dessas e assim por diante. Estamos organizados em comissões, em vários bairros. Então, às vezes, as pessoas são da comissão, mas não tem interesse em ir à reunião municipal. No extremo sul, é muito interessante, porque lá a luta se juntou com grupos que já existiam, com militantes que já atuavam lá; então, só uma parte das pessoas é do Passe Livre. As comissões são autônomas. Mesmo a reunião municipal aberta não dirige as comissões. A gente está tentando readequar a estrutura do movimento para definir o papel do espaço municipal, com ele fortalecendo as comissões.

(R): Então vocês têm uma estrutura: direção, comissões regionais, de bairro...

(L): Uma estrutura, sim, mas direção municipal não. Existe uma reunião municipal, aberta. O debate dentro do movimento é que a horizontalidade exige estrutura, a horizontalidade é sempre um horizonte que você persegue, uma coisa que está sempre em construção. Para combater as hierarquias informais você precisa de estrutura, você precisa ver como vai dividir as tarefas e tudo mais, porque se você não tem isso, as tarefas se acumulam e se concentram sempre nas mesmas pessoas.

(R): Então o que você está me dizendo é que a horizontalidade supõe uma estrutura.

(L): Sim, com certeza. O movimento feminista, já na década de 70, era um dos primeiros que estava discutindo a horizontalidade. Sobre isso, um texto muito interessante, é A tirania das organizações sem estrutura, de Jo Freeman. Esse texto é sempre rediscutido no movimento, porque no MPL, mesmo com estrutura, com espaços formais, criam-se hierarquias informais.

(R): A imagem que a mídia passou para a população naquela época, em 2013, é de que o MPL seria um movimento meio bagunçado, espontaneísta, ou seja, tudo aconteceria meio espontaneamente, sem organização.

(L): Sim, houve uma organização que dirigiu, pelo menos, o começo de um processo gigantesco. Isso não foi horizontal. Ocorre também a disputa política da interpretação das Manifestações de Junho. Ignorar os dez anos de revoltas, pelo menos esses dez anos de MPL, de revoltas, contra o aumento das passagens, limitar esse fenômeno ao ano passado, essa é uma interpretação que a gente refuta.

(R): Quem são os militantes, pelo menos os mais envolvidos, do MPL? Quem são essas pessoas? É esse pessoal de ensino médio? Vem da elite? Da periferia? Da faculdade de filosofia da USP?

(L): Tem um pouco de tudo, mas a maioria é mais jovem. As pessoas moram em diferentes regiões da cidade. As pessoas que eu trouxe para o MPL, especificamente, eram alunos dos colégios construtivistas ou mais progressistas; a gente fala "do vale encantado do Rio Pinheiros"... Hoje em dia essa turma está fazendo faculdade, principalmente de ciências humanas, outros já são professores da rede pública, ou fazem mestrado.

(R): A minha impressão era a de que a maioria dos integrantes seria o pessoal da Filosofia, lá da USP, estudantes que estariam mantendo um núcleo meio forte lá.

(L): Na USP menos, justamente pelo Movimento estar mais focado num setor estudantil secundarista. Mas muitas pessoas acabam indo do ensino médio para a USP; acho que a própria participação no movimento, e não só no Passe Livre, a experiência política na época do ensino médio desperta a perspectiva de ir para a faculdade.

(R): Como o MPL se coloca em relação ao capitalismo? O MPL é um movimento que pretende o socialismo e usa a ideia da tarifa zero como uma estratégia, tal como já declarou Demétrio Magnoli? O fim da sociedade capitalista e a construção de uma nova sociedade são ideais a serem perseguidos ou, pelo contrário, a luta pelo passe livre é uma luta por direitos no interior, mesmo, do capitalismo?

(L): O Demétrio acusa o MPL de ser anticapitalista e considerar a tarifa zero algo secundário. De fato, está na nossa carta de princípios que a gente é anticapitalista, mas as coisas não são separadas “nas caixas” capitalismo e anticapitalismo. Paulo Arantes, ao contrário, escreveu no Aliás (está lá no site da Boitempo) como a tarifa zero – e essa é uma questão muito importante para o movimento – é uma demanda realizável dentro do sistema, dentro do capitalismo, e até mesmo pode trazer benefícios econômicos para circulação da mercadoria, circulação de valor, na cidade. Mas, por outro lado, ela aponta para além do sistema, porque ela é um serviço gratuito ou, pelo menos, aponta para a dimensão da socialização. A esquerda tem discutido muito pouco isso, mesmo na academia. A gente precisa estudar mais o que é o sistema de transporte na nossa cidade, porque ele é essencial para a força de trabalho chegar até o local de trabalho todos os dias. Essa é a principal função do sistema de transportes, e isso, às vezes, nas próprias escolas falando com os alunos fica claro: “para que é o sistema de transporte?”; “para levar a gente para o trabalho”. Se é assim, o sistema de transportes deve ser custeado por quem mais se beneficia.

Um outro ponto da disputa de interpretação é não relacionar o problema do transporte aos trabalhadores. A própria esquerda governista, “do consenso”, afirmou que não foram os trabalhadores que tinham ido para as ruas. Então, quem foi? É claro que a questão do transporte está ligada ao trabalho, ao ambiente de trabalho, ao tempo de trabalho, ao local de trabalho! Também tem a ver com o espaço, a dimensão da segregação urbana. Mas o espaço também remete ao trabalho, porque esse é um espaço construído, é trabalho cristalizado, é trabalho morto separado do trabalhador, e o transporte é uma das peças fundamentais para separar o espaço da cidade do próprio trabalhador que o produziu como mercadoria.

Acho que essa é uma dimensão muito importante para pensar: como a própria tarifa zero tem uma dimensão anticapitalista. O transporte é um ponto central das nossas cidades hoje em dia. O sistema, que está quase em colapso, serve justamente para alienar o trabalhador daquilo que ele produz, de manter o trabalhador longe da cidade. São Paulo é muito isso: a grande parte dos trabalhadores, a maioria, mora fora do centro expandido e tem que se deslocar até o centro todo dia, mas não tem acesso a todos os bens que estão nesse centro.

(R): Na Av. Paulista, na década de 90, aos finais de semana, não havia ninguém na rua, ela ficava vazia. Mas nos anos 90, 2000, isso começou a mudar; o movimento da Av. Paulista de hoje, aos finais de semana, nem se compara com o vazio da década 80. Houve uma certa apropriação do espaço da Paulista e do centro, mas ainda está muito longe de ser algo...

(L): Para o jovem da periferia, o trabalhador da periferia, três reais vão fazer a diferença no fim do mês se ele vier para a Paulista no domingo. É muito dinheiro três reais pelo transporte, no fim do mês faz muita diferença. Além disso, uma dimensão que está associada desde o começo dessas revoltas é a dimensão de retomada das cidades. As revoltas têm essa dimensão de retomada da cidade.

O Movimento tenta elaborar melhor uma dimensão completamente anti-sistêmica também: o rechaço ao sistema político como ele está colocado, a política tradicional que reproduz as hierarquias do próprio sistema, a burocratização que caracteriza a nossa sociedade. O Movimento aponta para além do mundo em que a gente vive, um outro mundo possível, que a gente está fazendo na prática, nas decisões por consenso, um movimento que está sempre tentando ser horizontal, que dirige, ao mesmo tempo em que se nega enquanto direção. Por mais que tenha tido direção, existe esse movimento de se negar enquanto direção e são esses pontos, justamente, o que aponta para além dele mesmo. Hoje existe uma direção, mas estamos nos negando também e isso é possível. É uma direção de um jeito muito diferente, existe uma direção que quer perder o controle, de fato, essa era a nossa estratégia em junho.

Junho teve uma estratégia, foi planejado, a gente sabia o que tinha que fazer, a gente fez uma série de atos antes, também a partir de trabalhos nas escolas. Cinquenta, cem moleques das escolas fazendo as coisas, teve manifestação lá no M'Boi, no sul da cidade, com associação de moradores e, então, vendo o que havia ocorrido nas outras cidades, a gente sabia que aconteceria um grande ato. A gente decidiu que ia acender a primeira barricada. Uma boa síntese da nossa estratégia: acender a primeira barricada, que foi, de fato, o que a gente fez com várias catracas que tinham pneu dentro, e aí travamos uma das principais ruas da cidade, a Av. 23 de Maio. É uma das táticas do movimento: jogar a cidade que tem tantos problemas de circulação, jogar a dinâmica da circulação contra ela mesma, já que a cidade está estruturada assim: precisa transportar montantes gigantescos de força de trabalho até os locais de trabalho e, todos os dias, depende disso e, para isso, depende de artérias principais. O Movimento joga com essa racionalidade, ou irracionalidade, da cidade contra ela mesma, já que existem poucas artérias grandes e principais para irrigar essa cidade-máquina. Onde a gente queria chegar acendendo a primeira barricada: a perder o controle. Isso só foi acontecer na segunda-feira dia 17 de junho, quando um milhão de pessoas vão para as ruas. Aqui em São Paulo, foram muito mais de 100 mil pessoas: a gente chegou lá na Ponte Estaiada e ainda havia gente no Largo da Batata! Lá a gente perdeu o controle, por mais que a gente tivesse conseguido garantir o trajeto que a gente queria para aquele dia (ir até a Ponte Estaiada), com muita briga com os partidos, inclusive. Mas a gente chegou lá, na Ponte Estaiada, e as pessoas não queriam parar, as pessoas queriam ir para o Palácio do Governador, e a gente foi.

(R): O plano inicial era ir até a Estaiada aquele dia.

(L): Também foi mal planejado aquele dia. Esse tanto de gente vai ficar parado na Estaiada? Não vai, e não foi. Saindo do Largo da Batata, uma parte das pessoas seguiu pela Marginal e outra parte, pela Av. Faria Lima; e se juntaram na Estaiada. Na Estaiada, uma parte conseguiu acabar mesmo, mas a parte que eu estava não: “A gente tem que continuar! Tem que continuar!”, até que: “Vamos para o Palácio do Governador!”. Estava o pessoal das torcidas organizadas com a gente nesse dia; eles têm uma “puta” raiva do governador, e aí eles quebraram o portão do palácio do governo. Na terça-feira, a gente já não conseguiu garantir o trajeto, a gente queria ir para a Marginal Tietê, as pessoas quebraram o portão do prédio da prefeitura e foram para a Av. Paulista. O grupo em que eu estava conseguiu ir para a Paulista, a gente pegou a Radial Leste, a Av. Vinte e Três de Maio e chegou na Av. Paulista, foi legal. Me lembro de uma cena que me marcou naquele dia também. Ali, próximo ao Centro Cultural São Paulo, existe uma escultura, da Tomie Otake. É uma obra que só vê quem passa de carro. Quando a gente passou lá, a garotada começou a subir e a descer de skate, foi muito legal. Era a apropriação mesmo, a dimensão de retomada das cidades que as manifestações têm, e que tem tudo a ver com transporte. Por isso as coisas estão muito ligadas, não dá pra separar forma e conteúdo.

Durante muito tempo, a gente travou um debate dentro do Movimento: algumas pessoas achavam que o principal, a coisa mais interessante do Movimento era a forma pela qual ele se organizava, a forma que apontava para além do sistema, e a reivindicação seria secundária. Outras pessoas, ao contrário, entravam no movimento porque acreditavam que o transporte era um ponto central, se interessavam por isso. Acho que a gente está no momento em que estamos conseguindo ver que as duas coisas estão totalmente ligadas.

É só na terça-feira que a gente perde, de fato, o controle, e é justamente a perda do controle que leva à vitória do movimento. Estava na nossa estratégia: a gente precisa ir, ir, ir, controlar, controlar, controlar até perder o controle total, incluir a nossa marca, a nossa direção para as manifestações, o nosso sentido, o sentido que a gente quer dar, até explodir mesmo. E, então, explodiram as pautas também, como não podia deixar de acontecer numa perda de controle, principalmente quando abaixou a tarifa. Mas abaixou a tarifa quando os governos viram que tudo saiu totalmente do controle, que ninguém podia controlar mais aquilo. Um limite do movimento é justamente esse: ele busca a perda de controle, mas como ele é focado em uma reivindicação só, quando essa reivindicação é atendida, toda essa explosão que se mostrou com a perda de controle acaba e vira um monte de pautas, diluídas.

Acho que no segundo ano em que o aumento da tarifa foi barrado em Florianópolis, por uma decisão judicial, essa decisão foi embasada na necessidade de restabelecer a ordem na cidade, e não na justiça ou na legitimidade do movimento. Ou seja, o próprio Poder Judiciário escancarou o que era necessário o Movimento fazer para ganhar, que é o caos na cidade, a ameaça de caos, que não se concretiza e não ia se concretizar. O limite estava dado desde o começo.

Acho que uma coisa importante a ressaltar nessas lutas históricas, é que aqui em São Paulo, pelo menos, a luta de 2011 era um marco forte, havia sido a maior luta dos últimos anos da cidade até 2013. Foram três semanas de atos grandes, fomos na casa do Kassab, paramos importantes ruas, a Paulista inclusive, foram manifestações grandes com seis, sete mil pessoas. Aquela luta ficou na memória, tanto que estávamos esperando a próxima luta contra o aumento. Tanto que a primeira manifestação de 2013 já foi maior, ou pelo menos, igual, às manifestações de 2011, com muita gente. Então, a coisa já começou em outro patamar, e foi crescendo.

As manifestações já estavam maiores do que sempre foram. Não estava igual, estava muito mais intenso, porque havíamos decidido que íamos fazer uma manifestação atrás da outra, olhando para a experiência de outras cidades, olhando para a experiência de 2011, que era uma manifestação que se arrastou por três meses e não deu em nada. Então íamos fazer uma quinta; se der certo, se as pessoas estiverem empolgadas, na própria manifestação e pelo facebook, vamos chamar uma para o dia seguinte. E chamamos uma para o dia seguinte.

(R): Pois é, e eu ficava pensando que, com uma manifestação atrás da outra, o movimento ia esvaziar, as pessoas iriam se cansar, mas, pelo contrário.

(L): É, e foi enchendo. Empolga muito, a manifestação. Essa é uma característica das manifestações do Passe Livre, essa dimensão espetacular, elas são um espetáculo também. Elas são empolgantes, inclusive pelo fato de as pessoas não saberem para onde estão indo. Os atos são gostosos. Eles são empolgantes, tem muita adrenalina, mesmo quando a polícia reprime, as pessoas não querem sair, elas querem se juntar. Isso foi uma coisa que a gente viu, já no primeiro dia, em junho. A repressão já não estava sendo capaz de dispersar as pessoas. As pessoas estavam muito empolgadas.

Eu acho que, depois de junho a gente conseguiu reavivar mais essa cultura de manifestação, essa coisa continuou. Por outro lado, corre-se um risco grande dessa coisa da "rua pela rua", que coloca a rua como fim em si mesmo, o que nunca foi para a gente do MPL. Se ela aparece como um fim em si mesmo, é só porque é a retomada dela o que importa. Mas não uma retomada apenas momentânea, mas uma retomada momentânea como passo para uma retomada final, ou pelo menos, para uma retomada mais cotidiana e não extraordinária. Acho que a gente corre esse risco.

No outro extremo, está o fenômeno dos Black Blocs, o fetiche da violência, a violência como fim em si mesmo. O MPL levou a cabo diversas ações que foram consideradas violentas pela imprensa, pelo governo, pela polícia, mas também existe uma disputa sobre o que é violento e o que é pacífico, isso é uma linha tênue. Queimar pneu, por exemplo, fechar a Paulista era uma coisa totalmente violenta antes de junho, depois de junho já não.

(R): Falando da violência, da depredação. Naquela manifestação em que as pessoas seguiram para o gabinete do prefeito, a última antes dos governos revogarem o aumento da tarifa, o centro ficou um caos, houve quebra-quebra, saques, e a polícia se omitiu, demorou muito para chegar. Vocês, do MPL, não se sentiram responsáveis por tudo aquilo, por aquela violência, que inicialmente não havia sido planejada por vocês, mas que vocês poderiam ter previsto? Vocês não pensaram que poderia acontecer algo que escapasse ao controle?

(L): Mas o nosso objetivo era justamente perder o controle. Foi o que aconteceu nesse dia. Responsabilidade é uma palavra complicada, justamente porque a intenção era não ter controle, e não tivemos mesmo, não conseguimos nem imprimir o trajeto que queríamos nesse dia, perdeu o controle, é isso mesmo. De alguma forma, a gente também estava trabalhando para perder o controle. Porque a gente sabia que só assim conseguiríamos ganhar. Tem uma dimensão muito interessante, muito poderosa numa situação de descontrole: de ausência de poder, que permite vislumbrar um outro poder, talvez, mas isso não se concretiza.

Houve situações mais interessantes, mas que não apareceram na mídia, porque ocorreram na periferia. Em toda a periferia houve protesto naquele dia, pararam a Marginal lá na altura da ponte de Socorro, saquearam lojas no Grajaú; houve muito, muito saque, foram mais de 80 ônibus quebrados no Terminal Grajaú. Também foi isso que deu medo no governo, porque as coisas não estavam acontecendo só aqui no centro. Justamente nos lugares, ainda mais na zona sul, que é um lugar onde o governo tem mais apoio, um dos lugares mais pobres da cidade, que ele viu que, de fato, a coisa estava fora de controle.