Mariano Leal de Medeiros

Ultimate Frisbee e formação nas aulas de Educação Física

Cheers! Assim o saludo, caro leitor! Celebrar conjuntamente faz parte dos grupos que partilham de algo em comum: a família que celebra as festas de fim ano, os amigos que se encontram em aniversários, as pessoas próximas que comemoram as conquistas individuais, os professores que brindam um aumento de salário, os torcedores de equipes esportivas que cantam a vitória. Dentro desse contexto, uma pergunta: há espaço para brindar com um adversário? Utilizando o esporte mais ilustrativo da cultura do nosso país como exemplo, você, leitor, consegue imaginar corintianos e são-paulinos compartilhando experiências e celebrando o encontro após um jogo? Confraternizar com aqueles que acabaram de tentar nos derrotar parece algo muito complexo quando se pensa nos exemplos da cultura brasileira, mais especificamente da cultura esportiva.

Este texto tem como objetivo convidá-lo a uma reflexão acerca do sentido do jogo e do esporte que é ensinado nas escolas. Aqui parte-se do pressuposto de que o conteúdo da Educação Física Escolar está inscrito no que chamamos Cultura Corporal de Movimento (Suraya, 2002) e que, portanto, compõe-se de blocos denominados Danças, Lutas, Ginásticas, Jogos e Esportes. Partindo dessa leitura da cultura corporal, o professor pode, juntamente com seus alunos, estabelecer percursos para buscar as expectativas de aprendizagem estabelecidas pelo currículo existente. Esses caminhos poderão ser elaborados a partir do conhecimento prévio dos alunos sobre a própria cultura corporal que eles conhecem ou estão inseridos e também pelas intenções formativas que o professor estabelece, dentro da concepção da escola na qual trabalha. Um exemplo disso seria, no bloco de jogos, os alunos compartilharem com os colegas de escola os jogos que conhecem em seu grupo social, seja família, comunidade, amigos, etc., para perceberem, por exemplo, quais são as diferentes leituras que existem sobre os jogos apresentados, o que tais práticas explicitam da história daquele grupo, como os jogos interferem na dinâmica entre pessoas e na formação pessoal de cada um. Por outro lado, ao trazer outros exemplos de práticas corporais, o professor pode apresentar contrapontos às argumentações, conhecimentos, valores explicitados pelos jogos trazidos. Nesse sentido, cabe ao professor ter a sensibilidade de selecionar e escolher práticas que venham contribuir na discussão e elaboração do conhecimento e não apenas reforçar práticas estereotipadas.

Ao pensar na função formativa das práticas corporais, mais especificamente no universo dos jogos, Broto (2001) discute a intencionalidade dos jogos dentro de diferentes contextos, questionando os valores que estão por trás dessas práticas. Orlick (1989) também coloca que quando participamos de um jogo nos inserimos em uma minissociedade, podendo nos formar em direções variadas. Ao levantarem essas questões os autores indicam que, dependendo dos valores, crenças e estruturas que estão por trás dessas minissociedades, podemos aprender a sermos solidários ou indiferentes, cooperativos ou competitivos e etc. Por isso, além da investigação e análise das diferentes práticas corporais que os alunos aprendem, é importante a consciência das escolhas que cada professor realiza em relação às práticas que ensina.

Existem alguns esportes que ilustram, de certa forma, através de sua estrutura e de seu modo de jogar, características culturais dos grupos. O Rugby e o Futebol Americano são exemplos de jogos em que o objetivo é conquistar território, muito similar ao modo inglês e, posteriormente, norte-americano de lidar com a expansão de seu poder, fosse por conquistas ultramar ou avanços ao Oeste. Outro exemplo, que há muito tempo se debate, é a forma de o brasileiro jogar futebol e o quanto isso representa a forma de nossa sociedade ser e se relacionar. Esses são exemplos de como os jogos possuem valores e sentidos diferentes em suas práticas e os valores que os alunos podem aprender ao jogá-los e analisá-los. Seja por desejo de ampliar o repertório de conhecimento dos alunos, seja por querer trazer contrapontos às praticas corporais que eles vivenciam, um caminho importante que o professor pode seguir para contribuir tanto na construção da identidade do aluno quanto no aprofundamento da leitura de mundo do aluno é trazer como conteúdo práticas corporais de diferentes culturas, sejam do mesmo país ou não.

Neste ponto, voltamos à pergunta que Orlick e Broto fazem suscitar: quais valores estão por trás de uma prática corporal e que formação o aluno pode ter com ela? Um esporte que vem de outra cultura e que pode ser uma resposta positiva à pergunta realizada é um esporte que bebe da mesma fonte cultural que o Futebol Americano e, embora seja mais recente, pode contribuir muito com a formação dos alunos, independente do contexto social em que vivem: o Ultimate Frisbee!

O Frisbee surgiu de uma brincadeira entre funcionários de uma fábrica de discos de papelão (chamada Frisbee) que começaram a jogar os discos entre si. Desse jogo, algumas variações surgiram ao longo do tempo, mas a que nos interessa neste momento é o Ultimate Frisbee. Farei uma breve explicação das regras para que possamos compartilhar dos mesmos signos e fazermos a leitura do esporte.

O Ultimate é um esporte que se joga em duas equipes de sete jogadores e cujo objetivo é conquistar o território passando-se o disco entre os jogadores até um deles chegar na Zona de Pontuação e receber o disco (touchdown), tal qual o Futebol Americano. O jogo tem aproximadamente 1h30min de duração e é jogado em um campo de proporções similares à metade de um campo de futebol (cortando-se pela metade no sentido longitudinal do campo). Quem fizer mais pontos ao final do tempo de jogo torna-se o vencedor. O jogador que estiver de posse do disco não poderá andar com ele, podendo apenas manter um pé fixo no chão (pé de apoio) enquanto o outro pé o ajuda a ganhar a mobilidade necessária para fazer o passe ou lançamento do disco evitando a marcação. Quando um jogador recebe o passe ou lançamento, ele pode dar quantos passos quiser para se equilibrar, não havendo uma regra específica de passos para isso. Em relação à defesa, o defensor não pode tirar o disco da mão do atacante nem bater no mesmo, recuperando o disco apenas quando esse cai no chão, ou quando algum defensor o intercepta. O contato físico que atrapalha o movimento do jogador, seja de defesa ou ataque, é considerado falta. Como última regra a destacar, vale dizer que o atacante pode ficar dez segundos com o disco na mão para lançá-lo e que esse tempo é contado pelo marcador que está próximo a esse atacante de posse do disco.

Compartilhando do entendimento desse jogo, passo a destacar alguns pontos importantes que revelam valores que estão por trás dessa prática. Primeiramente, não há um árbitro. Toda e qualquer decisão é tomada durante o jogo em conversa entre os jogadores, discutindo a situação em questão. Após a chegada de um CONSENSO, o jogo é reiniciado de forma que se tente estabelecer como o jogo teria prosseguido caso a situação que o interrompeu não tivesse acontecido.

Retomando a regra que o jogador que recebe o disco pode dar alguns passos para se equilibrar sem um número pré-estabelecido, como isso se desenrola no jogo? O que impede o jogador de dar alguns passos a mais para ganhar território, mesmo após o equilíbrio ter sido reestabelecido? A primeira resposta é a ética esportiva. Parte-se do princípio de que o jogador será ético e honesto, não se fazendo valer de irregularidades (ou no termo mais brasileiro, malandragens) para vencer o jogo. Também se torna um caso de discussão caso o adversário conteste o lance, retomando o primeiro exemplo da resolução por consenso.

Nas questões relativas a outras violações, é importante destacar duas atitudes muito comuns nos jogos: uma falta, em sua grande maioria, vem seguida de um pedido de desculpas e após uma violação, há um momento de conversa e esclarecimento do ocorrido, principalmente nas situações que envolvem pessoas inexperientes. Vejamos com cuidado a situação: um adversário ensina o outro sobre o porquê foi falta ao mesmo tempo em que o outro compreende e aprende com a situação!

Nas equipes, como em todo jogo coletivo, existe a necessidade de um alto grau de cooperação. No caso do Ultimate Frisbee, esse grau se eleva, já que o jogador não pode se locomover com o disco na mão, dando a todos os jogadores importância tática e técnica.

Por último, é imprescindível destacar o ato final do jogo, para além do término do tempo de partida. O ato final é chamado de CHEERS! Um momento no qual os jogadores das duas equipes sentam juntos para conversarem sobre o jogo, as situações, colocarem suas impressões, expressarem contentamentos e descontentamentos, se explicarem, enfim, compartilharem a experiência pós-jogo com os adversários! A vitória e a derrota ganham outro lugar no processo esportivo, bem como a forma com que cada um pode lidar com essa situação inerente ao jogo competitivo. Sugestivamente, o nome dado a esse ato final, simboliza o que se aprende para além do jogo e do resultado.

Na análise desse esporte e de suas características, é necessário ressaltar que os conflitos existem, que jogadores têm atitudes desonestas, que o Cheers também tem discussões mais calorosas, que existem momentos de desrespeito e que a troca, o aprendizado e a confraternização são quase ínfimos, principalmente quando se participa de competições de alto nível. Ressalta-se isso para expor que a atitude humana não é feita apenas pela estrutura do jogo, mas individualmente como cada um vê e vive a vida, portanto, tanto em jogos cooperativos podem haver atitudes extremamente competitivas, como o inverso também é verdadeiro.

O mais importante na experiência e aprendizado desse esporte que nasceu de uma cultura reconhecidamente competitiva é perceber o que a estrutura dele oferece de condição para o aprendizado dos alunos e quais valores estão por trás do jogo e o constroem. Retomo a valorização do compartilhamento de saberes e experiências, da aprendizagem através do conflito e da importância de se colocar e debater ideias para se chegar ao consenso, como aprendizagem fundamental na formação dos alunos.

Esse jogo, por ser pouco conhecido, por ser de uma cultura diferente da nossa, por ter uma estrutura incomum para a cultura brasileira é desestabilizador, é motoramente intrigante e socialmente complexo, principalmente quando se tem, no país, valores esportivos que se baseiam na malandragem do brasileiro. Contrapor, expor, discutir e vivenciar outras práticas torna-se essencial na formação dos alunos e na abertura das possibilidades relacionais dos mesmos, seja com os outros, seja consigo mesmo. Por isso, me despeço com um brinde! Um brinde ao conhecimento, à ética e à aprendizagem com o saber dos outros!

Referências bibliográficas

Broto, Fábio O. Jogos Cooperativos: o jogo e o esporte como um exercício de convivência. Santos/SP, Projeto Cooperação, 2001.

Orlick, Terry. Vencendo a competição. São Paulo, Círculo do Livro, 1989.

Suraya, Cristina D. & Rangel Irene C. A. Educação Física na Escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2008.