Margareth Buzinaro
Encantamento...
...Como professora.
Graças a um tanto de motivos que sequer dou conta de enumerar, a profissão professora sempre encheu minha vida de encantos, seja pelas inúmeras descobertas que fui fazendo ao longo de quase trinta anos de trabalho, seja porque, por um bom tanto deles, vivi no que costumo chamar de “estado de inocência e distração” que me faziam crer que podia tudo com as crianças; um “empoderamento”, pudesse dizer, talvez, que misturava intuição, busca e crença.
Não sei se consigo resumir em poucas linhas o que não relataria um episódio, apenas, mas estes estados aos quais me refiro logo aí acima.
Eram duas turmas de 4ª série, uma da rede pública e outra da rede particular, há bem uns 26 anos, que acompanhara durante pelo menos três, cada uma, por quase enlouquecer a direção e colegas para permitirem que assim fosse, em tempos de atribuição de classes e aulas, nas duas escolas – o que nem muito difícil era, para falar a verdade, porque havia um certo receio “do que teriam que enfrentar”, já que meu jeito de lidar com tudo já se mostrava meio estranho aos olhares mais atentos. (ou menos?)
Na escola particular, havia uma proposta de concluir a primeira etapa do primeiro grau – da época – , das minhas crianças, única turma, com uma excursão: um “acantonamento” numa chácara por todo um final de semana, custeada por pais e escola em parceria.
Na rede pública não seria possível fazer o mesmo, por questões meio evidentes...
Tentei, então, convencer a direção da particular a dar um jeitinho para levar minha turma da outra escola, pois que as crianças se conheciam – nossos alunos haviam participado de torneios na bonita e nova quadra coberta da escola pública, já compartilhado momentos significativos com meus alunos de lá – e seria, inclusive, uma espécie de promoção para aquela instituição particular com tantos recursos... Quem sabe até atrairia alguns alunos para séries posteriores... [Tentativas de marketing totalmente frustradas: Imagine: “O custo iria às alturas! Você tem cada ideia, Margareth! Esquece esse assunto!”].
Meu propósito era mais que levar meus alunos da rede pública para uma aventura, numa chácara, embora soubesse o quanto seria fascinante para eles... Queria promover um grande encontro entre todos, pois se conheciam de aventuras outras, mais possíveis, que já havíamos experimentado e que merecem muitas pipocas pedagógicas – breves relatos de fatos do cotidiano escolar – para ser contadas.
Resultado: resolvi fazer um acantonamento em minha casa: um sobradinho, na extrema periferia da Zona Leste de São Paulo, com dois quartos, uma sala, uma cozinha, um banheirinho com chuveiro, todo direitinho, e mais um – bem pequeno – para as necessidades mais imediatas, e garagem para um carro... Daqueles, praticamente sem quintal, com uma única entrada. Era novembro e nem todos puderam se envolver na aventura, pois que já estavam de viagem marcada para o feriado do dia 15, eleição, naquele tempo, e seus pais votavam em outros municípios; ou porque alguns avaliaram que estava ultrapassando os níveis do racional...
Tudo bem certinho, com aval da direção das duas escolas, autorizações assinadinhas por todos os pais, juntei lá no meu pedacinho de mundo mais de 40 crianças de sexta-feira à tardinha até o domingo depois do almoço. Mais meus dois filhos: Vítor com menos de um ano de idade e Clarissa com pouco mais de cinco.
Detalhe 1: Meu marido também votava em outro município, viajou na quinta à noite e eu não contei pra ele sobre o que faria...
(Então...)
Fato é que, movida pela crença, guiada pela intuição, protegida pela inocência, pela distração e pelo acaso, com a colaboração de algumas mães das duas escolas que embalaram na minha loucura e contribuíram, emprestando uma churrasqueirinha, mandando, lá, uma carninha, umas linguicinhas... O português da padaria que doou uma montanha de pães para as duas manhãs que passaram lá em casa... O outro português, dono do mercadinho, que entrou com mais umas bolachas e coisinhas que crianças gostam pouco, como mares de pipoca... O japonês da quitanda que contribuiu com uns tomates e umas verdurinhas... Meus, hoje, ainda, grandes e eternos amigos Judite e seu marido Feijó – que trabalhava no CEASA e trouxe caixas de frutas pra molecada... As vizinhas “apalermadas”, que foram levando cobertas e almofadas pra molecada se espalhar pelo chão na hora de dormir, o padre da igreja, que ficava em frente de casa e que me conhecia, amalucado, ao ver aquele monte de moleques e molecas tomando banho de mangueira na garagem, calçada, rua, e trouxe uns cavaletes para protegê-los do trânsito... Minha mãe que me ajudou com meu filho, bebê ainda, e na cozinha, na hora do macarrão com salsicha...
DEU TUDO CERTO!!!
À noite, meninas no quarto de minha filha, junto com ela, empoleiradas, amontoadas pela cama e pelo chão; meninos pelo chão da sala e sofás, à mesma moda... Dormir? Como assim, com tanto causo pra contar, histórias de terror, sombras na meia luz da escada, guerra de pipoca e almofadas, piadas?
Pela manhã, todos se ajudando na hora de servir o achocolatado, o pãozinho e o que mais tivesse.
Na hora do almoço, voluntários para colocar carne ou linguiça no espetinho ou lavar e enxugar pratos e copos (também emprestados que não tinha este tanto em casa).
E bola na rua, e corda, e dança, e desfile de moda, e cantoria e muita gritaria...
Detalhe 2: A volta do meu marido que estava prevista para segunda pela manhã – já que seu município de origem fica a dez horas de viagem, de ônibus, à noite – aconteceu no domingo pela manhã.
(Então...)
Ao ver aquela cena alucinante de moleques e molecas espalhados por todo canto da casa, olhou nos meus olhos, compenetradamente, e, com seu sorriso de Monalisa me disse: “Você não tem jeito mesmo!”. Mais tarde, além de bater uma bolinha com a molecada e ajudar com o churrasco, deu uma força na limpeza da bagunça que restou.
Mais que mais que mais que mais que encantadora as sensações que essa lembrança me provoca.