Yoyi Larra

Meu pai Jorge, conhecido pelo apelido de Yoyo, foi o primeiro filho de Helena e Jorge, que viveram os anos da Depressão causada pela Quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, marcada por uma das maiores crises econômicas do capitalismo mundial, que atingiu diversos países satélites dos Estados Unidos, inclusive o Chile.

Nessa época, segundo meu pai nos contava, meu avô ficou desempregado e construiu na garagem da casa junto com minha avó, uma quitanda onde eram vendidas as frutas e verduras produzidas no interior do quintal da casa. Também, minha avó costurava e consertava roupas.

A vida por um tempo foi muito difícil, sacrificada e viviam com o essencial, até que meu avô foi trabalhar nos Ferrocarriles del Estado de Chile como “inspetor de trens”. A vida aos poucos voltou ao normal e meus avós junto com seus dois filhos voltaram a ter uma vida tranquila.

Com o passar dos anos, meu pai também ingressou aos Ferrocarriles del Estado de Chile, como office-boy, passou por vários setores e cada vez ascendia um degrau, por mérito, esforços, sacrifícios e dedicação dentro da instituição. Sua trajetória metódica foi coroada quando chegou ao topo da administração, adquirindo por mérito o cargo de Diretor de Recursos Humanos.

Meu pai sempre foi um homem trabalhador, bom pai, bom filho, bom irmão, tranquilo, calmo e solitário. Não tinha amigos e sua grande paixão era a mecânica de carros, além da música, leitura e da história do mundo. Lembro-me dele lendo “Adios al Septimo de Linea”, que por várias vezes pegava um dos livros, lia toda a noite e de manhã ia para o trabalho e voltava novamente a ficar toda a noite lendo. Os livros, desta coleção eram em torno de vinte. São uma narrativa histórica da Guerra do Pacifico, conflito ocorrido entre 1879 e 1883, confrontando o Chile às forças conjuntas da Bolívia e do Peru, escrita pelo chileno Jorge Inostrosa. Hoje fazem parte da Biblioteca “Compañero Salvador Allende” em Valparaíso-Chile. Após a morte do meu pai a maior parte dos seus livros foram doados pela família para Bibliotecas Públicas e das periferias de Valparaíso e Viña del Mar no Chile.

Não posso deixar de lembras que por causa do seu amor pela musica preferencialmente pelo jazz tradicional de New Orleans , fundou com um grupo de amigos o “Club de Jazz de Santiago” e sua banda “Los Mapocho Stompper”, o jazz era sua paixão. Lembro-me das festas em casa, com a participação da sua banda, em que ele tocava saxofone e clarinete, e os amigos se divertiam , dançavam e apreciavam a boa música. Foi nessa época que aprendi a dançar “Charleston”. Dançava com meu pai e minha mãe, os três juntos.

O gosto também pela mecânica de automóveis levou meu pai a fazer um curso na Universidade Técnica do Estado de Chile onde se formou como tecnólogo mecânico de automóveis. Toda a família sentia muito orgulho do esforço de meu pai.

Foi nesse contexto que chegou a nossa casa um amigo seu, colega do trabalho. Eram muito amigos, essa pessoa estava sempre em nossa casa, nas reuniões, festas e comemorações. Algumas vezem sem nenhum motivo ou convite chegava a minha casa e era muito bem recebido.

Era um homem de meia idade, muito conversador, simpático, cantava, tocava violão e dançava muito bem. No trabalho, era subordinado a meu pai e não tinha uma função de destaque. Tinha problemas de saúde e econômicos. Hoje acredito que foi por isso que meu pai o “adotou”.

Em toda a minha vida conheci quatro amigos-irmãos do meu pai, que nos visitavam frequentemente em nossa casa e que eram amigos de sempre, de toda a vida, desde crianças: Hernan, Gabriel e Juan, que eram irmãos, e esse novo amigo do trabalho.

A vida foi passando, minha irmã casou se, mudou de casa, fui tia e tive que partir para outra cidade para continuar meus estudos universitários. Entrei na UTE (Universidad Técnica del Estado), e foi nela que me engajei definitivamente nas lutas sociais, tornando-me ativista política e militante da esquerda chilena. Cheguei a fazer parte do Centro de Alunos da Universidade e participava de quase todos os movimentos populares, sociais e estudantis da cidade e de Trabalhos Voluntários.

Não era segredo, para ninguém da nossa família e amigos, a minha condição política, nem do meu namorado. Dentro da família e no círculo de amigos dos meus pais sempre existiram pessoas que não me olhavam com bons olhos e muitas vezes perguntavam a minha mãe que bicho tinha me picado, para que eu fosse tão diferente de seus outros filhos. Minha mãe só dava risadas, pois nem ela mesma sabia explicar por que eu tinha ideias tão progressistas e revolucionárias, tão diferentes daquelas de minha irmã.

E foi assim que chegou o 11 de setembro de 1973, dia em que me encontrava de férias de inverno em Santiago. Foi nesse dia que o Chile e a maioria dos chilenos fomos vitimas do mais sangrento, brutal e cruel Golpe Militar fascista, único na história pela crueldade dos assassinatos, torturas, desaparecimentos, prisões, e fuzilamentos de inocentes e ativistas políticos partidários do presidente Salvador Allende.

Nesse dia meu pai chegou em casa transtornado por tudo que tinhas visto no caminho para casa, foi detido várias vezes por militares que o revistaram e revistaram seu carro. Viu dezenas de corpos, espalhados pelas ruas e boiando no Rio Mapocho, que corta a cidade.

Quando meu pai chegou em casa, se trancou no quarto e da sala se ouvia seu pranto que aos poucos se transformou em palavras que não entendíamos. Chorava desesperadamente e nos chamou. Pude ver seu desespero, seus olhos cheios de lágrimas de decepção, frustração e a dor da traição.

Nesse momento, ouvi da boca de meu pai a mais terrível e dolorosa das revelações. Ele nos disse:

“Quando cheguei ao trabalho, não sabia o que estava acontecendo, só me estranhou o movimento de tanta gente desconhecida, carros militares, uniformizados armados em todo lugar. Estacionei o carro, não me lembro onde e subi até a minha sala. No caminho vi muitos militares e civis armados. A sala estava aberta, vidros quebrados, as gavetas reviradas, armários com as portas arrombadas, papeis e documentos pelo chão. E, sentado na minha mesa, na minha cadeira “meu amigo” vestindo o uniforme de guerra dos militares golpistas, com insígnias, medalhas, estrelas e armas na cintura que identificavam seu alto grau na hierarquia do exército, Em suas mãos o porta-retratos que eu tinha em cima da mesa com a foto das últimas férias.

Meu “amigo” me disse: Yoyo volta para tua casa, você não tem mais nada que fazer aqui e neste momento está sendo exonerado, por mim, do seu cargo. Agora “nós” estamos no comando e no poder. Leva o porta-retratos e cuida de Yoyi e de seu namorado, neste momento eles estão em perigo. Levantou-se calado e saiu da sala, sem olhar para traz.

Meu pai continuava a chorar e repetia sem parar “eu fui por anos um informante sem saber”, trouxe para dentro da minha casa um agente fascista que estava em “missão” a fim de saber quem era eu, minha família e principalmente minha filha, o que ela fazia, onde estava, para onde ia, quais eram seus amigos e lugares que frequentava.

Acredito que nesse momento meu pai começou a morrer de decepção, frustração. Algo imenso, profundo e muito importante se rompeu e morreu dentro dele, por que foi traído por um dos seus únicos quatro “amigos”. Entrou em depressão e teve todas as doenças causadas por estresse traumático. Faleceu muito doente de artrite reumatoide, doença autoimune que ocorre quando o sistema imunológico ataca erroneamente os tecidos do seu próprio corpo.

Nunca mais tivemos noticias desse “amigo”. Mais de quarenta anos já se passaram e hoje posso entender em toda sua magnitude a dor e frustração de meu pai. Entendo o que sentiu, o que sofreu e os sentimentos desencontrados que habitaram seu coração.

O que fazer quando sabemos que por muito tempo fomos usados como meros “informantes”, por alguém que considerávamos um amigo?